sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Imbecis

Edição de foto: Blog Dom Rocha

"Pre-pa-ra que agora o fascismo vem com tudo". 

Não tenho o mesmo senso de humor nem o mesmo talento de Gregorio Duvivier para transitar entre crítica e piada com coisa séria. Mas concordo com a profecia do humorista do Porta dos Fundos transcrita no início do texto. 

A morte trágica do cinegrafista Santiago de Andrade já é usada malandramente para uma guinada à direita. A ideia de uma lei antiterrorismo é bizarra, retrógrada como quem a defende. Quem dispara um rojão contra outra pessoa, quem agride gente que pensa diferente, quem rouba, saqueia ou depreda patrimônio público ou privado é criminoso. Quem protesta pacificamente, não. O risco, agora, é demonizar todo tipo de manifestação. Para a classe política, desacostumada com a insurgência do eleitorado, seria uma benção. Para a sociedade, um desastre.

Os imbecis que se consideram salvadores do Brasil e usam máscara, visual inspirado no punk londrino e nome em inglês são massa de manobra. Tanto da esquerda radical burra que os coopta, quanto da direita reacionária que assiste de camarote ao circo pegar fogo e se "pre-pa-ra" para retomar o espaço perdido depois da saída dos presidentes-generais.

Involuntariamente, os black blocs são instrumento daquilo que criticam, ajudam quem está no poder e quem quer retomá-lo. Foram eles que esvaziaram as manifestações de junho, um movimento que parecia ainda mais importante que o das Diretas Já. A sociedade continua querendo protestar, mas não aceita as regras violentas dos meninos mimados de cara escondida que tomaram as ruas de assalto. O quebra-quebra faz muito barulho por nada. Parte de uma minoria, não é legitimado pela população, portanto, não assusta quem está poder. O que tira o sono de governante é avenida lotada de gente de bem.

A morte de um cinegrafista também se torna emblemática. Os meios de comunicação não são santos, cometem falhas, excessos e muitas vezes são manipulados. Por isso devemos calá-los? 

Depois da mordaça imposta pelo regime militar, a imprensa subiu, degrau por degrau, a escada que nos levou à liberdade de expressão e à democracia. O clichê de que uma não existe sem a outra é fato. Por piores resultados que elas tragam, em alguns momentos, sempre são melhores do que o cerceamento de ideias e do que qualquer ditadura (de esquerda ou de direita). Prefiro ter o direito de errar, seja numa opinião ou num voto, do que não poder dizer o que penso ou decidir quem vai governar o lugar onde vivo.

É sutil, mas pesa sobre nós uma pressão para empurrar-nos escada abaixo. A justiça que proíbe uma reportagem contra a família Sarney antes da publicação -isso não é censura?-; o partido que, tentando justificar seus atos ilegais como uma "armação da imprensa", manipula seus correligionários e marionetes sindicais para agredirem jornalistas; a polícia que quer calar repórteres com intimidação e balas de borracha ou de chumbo; e os "manifestantes" que incluíram jornalistas em seus alvos de violência. 

Como disse Diego Escosteguy,  o rojão que matou o cinegrafista da Band foi aceso bem antes da manifestação do último dia 6. A animosidade de radicais (mais uma vez, de direita ou esquerda) com a imprensa não é de hoje. Em toda passeata sempre tem algum grupo tentando enxotar equipes de reportagem. Estúpidos. Querem gritar para surdos.

Por Romeu Piccoli

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Borboletas no estômago

Foto: Patrícia Ferraz - com inspiração de Gisele Bündchen
Vesti um all star, que era pra entrar no espírito. No desjejum, cafeína, para evitar o sono. Cheguei atrasada. Aliás, foi sempre assim, por que mudaria agora?

A professora, num vestido azul marinho envelopado, com ilhós dourados ao longo da gola canoa, explicava o programa da disciplina. Óculos finos de lentes grossas, cabelos de anjinho, do tipo gordinha fofa. Sandália impecável de verniz, bolsa Louis Vuitton dependurada num suporte de mesa. Fazia o melhor estilo mulher moderna.

Depois do diagnóstico visual detalhado e do átimo de vergonha por interromper a aula — vergonha tão recorrente, quanto passageira — consegui concentrar-me.

Os neurônios trabalhavam em marcha: eretos, atentos, aflitos por estabelecer nexos à altura da explanação. As mãos suadas denunciavam o corre-corre intracelular. O estômago queimava, enquanto os olhos, secos de não piscar, deslizavam, agitados, entre os poucos metros quadrados da sala apertada e quente. Era como se, com as pupilas dilatadas pelo café, eu pudesse absorver pelos olhos tudo o que era dito ali.

Não sei se a professora tinha uma voz bonita. Mas admirei como poesia cada vocábulo, cada sentença e, acima de tudo, cada pausa. Acho mesmo que os melhores trechos de qualquer discurso estão nas pausas. É quando se demonstra um respeito por quem ouve. E quando a gente tem tempo para ponderar a profundidade do que foi dito.

É provável que os outros vinte e poucos colegas não tenham ficado tão deslumbrados quanto eu no primeiro dia de aula do Mestrado. É que fiquei feliz sobretudo por me descobrir capaz, novamente, de me apaixonar por uma professora.

Por Patrícia Ferraz

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Qualquer semelhança

Um desfalque na conta bancária e boas histórias para contar. São os resultados de um mês sem carro. Ou melhor, um mês em vários carros brancos com placas vermelhas, dirigidos por seres intrigantes. Fico curiosíssima para ouvir causos e peripécias dos taxistas. Geralmente, não precisa de pergunta, nem de uma repórter no banco de trás.

—Para onde?
—Alto da Lapa, por favor.

Esse era mais velho. Cabelos brancos, encaracolados. Falou tanto, que fiquei à vontade.

—Já te falaram que o senhor parece o Mandela?
—Mandela?
—É, o Nelson Mandela, que morreu recentemente — ele interrompe ao se lembrar:
—Ah, o presidente, né?
—Isso, da África do Sul.
—Não, já me falaram que pareço o Bira.
—Bira?
—É, do Jô Soares.
—Nossa, verdade. Parece o Bira mesmo.
—Tem um outro sujeito que o pessoal fala que eu pareço muito, mas eu não gosto. Fico bravo, às vezes.

O sinal fecha, ele olha para trás e, concluo, pasma:

—Reginaldo Rossi!

Rachei de rir. O taxista era simplesmente sósia do cantor. Bochechas grandes, lábio inferior carnudo, cabelos crespos e óculos. Irmão gêmeo separado na maternidade. 

—Todo mundo vive falando que eu pareço o Reginaldo Rossi. Outro dia, no ponto, uma mulher cismou que eu era ele. Os caras acharam graça, começaram a brincar que era eu, mesmo. Ele ainda não tinha morrido. Não é que a mulher veio me pedir um autógrafo?
—E o senhor deu?
—Eu não. Quer autógrafo, pede para ele.

No rosto carrancudo, a satisfação de ser reconhecido se mistura à frustração de ser sempre confundido. Ele se cala. Tenta provar que não se orgulha da semelhança. 

Alguns minutos depois do silêncio, raro numa corrida de taxi, não se aguenta. 

—Eu já carreguei ele. 
—Quem?
—O Reginaldo! Tava a mulher dele, um cara e ele sentou aqui na frente. Eu olhei, assim de rabo de olho, e pensei: "Se ele falar que eu pareço com ele, eu vou dizer: 'Eu não, tá louco. Eu sou bonito, você é feio'."

Não precisou. O cantor nem enxergou o rosto do motorista. Foi nessa época que ele começou a se fazer de desentendido. Quando alguém destacava a semelhança, ele fingia:

—Quem? Não conheço esse cara.

Mais um dedo de prosa e cheguei ao meu destino.

—Trinta e quatro.
—Deixa eu ver se o senhor parece mesmo o Reginaldo Rossi. Olha aqui… 

Ele se vira.

Não resisti. Até tinha pensado em poupá-lo, mas ele era a reencarnação do velho Reginaldo.

—Posso tirar uma foto?

Seu ReginaldoCoverBravoDemais ficou vermelho, entregou-me o troco e balbuciou:

—Quer foto? Pede pra ele.

Foi embora reclamando do destino inexorável de ser o clone vivo de um morto famoso.
Foto roubada, pra não dizer que inventei
Por Patrícia Ferraz