terça-feira, 22 de julho de 2014

Feminista, sim, e mulher

Arquivo
Cabelão e franjinha, cinco anos de idade, uniforme de malha e tergal, verão de 35°. Era hora da diversão. A escola levava os alunos para uma área conhecida como Campão: um imenso gramado com as mesmas medidas de um campo de futebol profissional. Ali, suada depois da brincadeira, meus desejos eram dois: beber uma garrafa d’água geladíssima e tirar a camisa. Só consegui satisfazer o primeiro. Claro. A professora nem precisou me explicar que menina dessa idade já não fica mais com o peitinho de fora na frente dos outros. Menino, sim. Fiquei olhando os coleguinhas no Campão, suados como eu, mas sem aquele uniforme quente, vermelho e bege, que mais parecia um pijama de mau gosto. 

Isso era 1991. E o episódio nunca me saiu da cabeça. Acho que foi a minha primeira reflexão feminista. E, na sequência, vieram outras. Almoço de domingo, tios e primos à mesa. Depois da sobremesa, mulheres à cozinha. Homens ao sofá. “Por quê?”, pensava. E, no começo, cheguei a desejar ter nascido homem. (!!!)

Dessa criança, não poderia ter saído uma adulta de direita, nem carola, nem a favor dos valores pregados pela “tradicional família mineira”. Até hoje, gosto dos temas que trazem a mulher para o protagonismo de sua vida. E acredito que estamos num caminho sem volta quando o assunto é a crescente igualdade de direitos entre os gêneros.

Nesse contexto machista em que nascemos e crescemos, sempre enxerguei o casamento como a instância da perda: perda de autonomia, de individualidade, perda até de personalidade. No meu inconsciente, decidir me casar era assinar um compromisso que me anularia as escolhas e aniquilaria minhas possibilidades de ser exatamente quem eu sou. Como se para me unir a outra pessoa eu precisasse ser uma MULHERZINHA. E como eu repudiava essa figura!

Mulherzinha, na minha cabeça, era aquela grande mãe sem vontade própria. Não pode investir na carreira, que deve sempre estar num segundo plano. Vive sobrecarregada com sua dupla jornada de trabalho ─ a cozinha e as obrigações domésticas não dizem respeito ao marido, né!? Mulherzinha dorme pouco, pare cinco filhos, não tem tempo para ler, malhar, viajar e sequer escolhe o sabor da pizza. Ela está sempre na sombra da FAMÍLIA, esse valor básico da vida em sociedade que, para mim, era um inimigo da independência.
Foto: Aline Bertoli

Até que a roda viva girou e acordei com uma aliança no dedo e um amado na cama. A feminista se casou: vestiu-se de noiva, assinou papéis no cartório, uniu as louças, as escovas de dentes, só não mudou de nome ─ isso já era demais para a minha cabeça.

Subitamente, meu pavor do fantasma da mulherzinha se avolumou. Declarei antecipadamente: não quero ter filhos! (Ora, como vou seguir planejando carreira e estudos se tiver obrigação com crianças?!) Fazia contas sobre quanta atividade doméstica eu havia feito na semana e comparava com as tarefas desempenhadas pelo marido. Aumentei a frequência da diarista. E coloquei na ponta do lápis todas as contas de casa para uma divisão igualitária, centavo a centavo. Era um grito de independência, um aviso: não vou me afastar de mim!

Meu marido, que não é bobo nem nada, entendeu rapidinho os recados. Aceitou a princípio todos os “não gosto” e “odeio” e “não quero” e “abomino”. E esperou que aquele furacão, o susto, o medo passassem. Parece até que ele já sabia o que ia acontecer.

Não sei quando percebi que é possível, sim, construir uma relação equilibrada, de respeito, sem que se percam as possibilidades individuais. E acredito mesmo que isso depende das nossas escolhas, dos nossos comportamentos, desejos e, principalmente, da nossa libertação. Os sutiãs foram “queimados” (descobri há poucos dias que não chegaram a ser queimados, mas vale a simbologia) há mais de 50 anos. A saída em massa da mulher para o mercado de trabalho começou no século passado. A geração seguinte parece não ter entendido o movimento e se viu obrigada a vestir a fantasia de super-mulher. Trabalha, estuda, cuida, cozinha, lava, passa, limpa, paga. Ufa! Elas fazem tudo e ainda se sentem insuficientes. Elas cuidam de quase tudo. Menos de si.

Foto: http://princesashe-ra.blogspot.com.br
Desde o início, recusei a capa da She-Ra. E também o avental. E tudo isso só funcionou porque o meu marido não tem pinta de Fred Flintstone e nunca sonhou em ser o He-Man. Ele faz compras de mercado, eu também. Ele arruma as dobradiças do armário, eu ajusto as porcas das prateleiras. Ele cozinha, eu lavo roupas. Ambos lavamos a louça e pagamos as contas. E ninguém perde. Ninguém precisa sofrer. Não existe desigualdade. Muito menos submissão.

Só assim entendi que o medo do machismo funcionava em mim como um cabresto. Ao mesmo tempo que me fazia seguir adiante, focada na tentativa de construir uma relação equilibrada, obnubilava a minha visão para aspectos da minha intimidade que eu insistia em ignorar. Como o universo tradicionalmente feminino era um lugar de  ameaça (lave louça e seja para sempre a doméstica), eu me afastava de tudo que historicamente fizesse parte desse papel. Não desejava ter filhos. Acreditava que seria assinar o atestado final de desistência de mim mesma. Maluco, né? Mas juro que pensava em filhos como o fim da vida, a morte da mulher.

Hoje, vendo como nós mulheres ainda lutamos por liberdade, acho necessário fazer algumas ponderações. Lutar é uma palavra que diz respeito a guerra. E por mais que ainda existam muitas injustiças de gênero, a maior guerra está dentro da gente. Acredito na necessidade de darmos prosseguimento às mudanças que começaram com os peitos de fora. Mas acho que não precisamos mais provar nada pra ninguém. Podemos ser efetivamente livres. Livres para não casar, não ter filhos, não cozinhar. E livres também para não nos sentirmos ameaçadas se alguma dessas for a nossa vontade.

O casamento e o desejo recente de ser mãe no futuro não me tornam menos independente ou autônoma. Pelo contrário. Assumir as minhas vontades, mesmo que algumas delas sejam as mesmas da mulherzinha de antigamente, me deixa mais perto de quem eu sou.

Terminou a era dos extremos (pelo menos no Ocidente). Sair da dominação, um dia, exigiu que nos afastássemos das mulheres que existem em nós. Mas, passou. Agora é hora de equilibrar a balança. Podemos ser tudo: profissionais, casadas, solteiras, donas de casa, cinquentonas sem filhos, parideiras de tradição. Desde que façamos as nossas vontades. É tudo uma questão de parar de lutar contra alguma coisa do lado de fora. E escolher o silêncio para ouvir o que vem de dentro.

Foto: Rik Ferraz
Por Patrícia Ferraz


sábado, 19 de julho de 2014

Ele me pediu um beijo*

Ele disse que a fé é como você estar pronto, em cima da montanha, para saltar de pára-quedas e se lançar no abismo. Ele disse que “Deus dá ao amado enquanto dorme”, portanto não tem nada de “Deus ajuda a quem cedo madruga”. Disse que as crianças precisam de liberdade na aprendizagem. E, que se um reitor, um professor universitário ou de cursinho prestasse vestibular, não seria aprovado - assim como ele próprio não seria.

Ele me fez pensar na minha fé. Na minha busca por Deus. Ele me incitou a refletir sobre o valor do trabalho e a importância limitada que ele deve ter na vida. Mostrou com o próprio exemplo a grandiosidade do papel da família.

Acredito fielmente que ele merecia um texto mais poético, mais elaborado, mais criativo. O problema é que preciso dizer com todas as letras. Preciso explicar bem explicadinho, que estive hoje com o mestre Rubem Alves e, acreditem! Ele me pediu um beijo***.

Por Patrícia Ferraz**

*Este texto foi publicado no meu antigo blog, há cinco anos, dias depois de uma entrevista que fiz com Rubem Alves pela EPTV, em Campinas. Já admirava textos e frases deles. Fiquei ainda mais encantada com o senhorzinho careca e cabeça branca, que conseguia elogiar e ser gentil sem a menor sombra de machismo ou invasão de privacidade. 

**Nunca fui adepta de transformar mortos em heróis. Por tê-lo conhecido, mesmo que brevemente, posso dizer com segurança que esse homem era uma alma especial. Não só pela genialidade com palavras e ideias, mas por uma humanidade e uma doçura encantadoras. Na data de sua morte, celebremos a obra e os ensinamentos de Rubem Alves. Ele vai saber que conseguiu dar sentido à própria existência. 

*** Beijo no rosto, óbvio.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Na casa do carrasco

Reprodução de painel/Munique 
Da janela do taxi, a visão em primeiro plano das pistolas automáticas nas cinturas dos dois alemães sisudos não era a melhor recepção que se poderia ter. Hitler, Holocausto, muro de Berlim, neonazistas. Todos esses clichês passavam pela minha cabeça.

Havíamos acabado de pousar e seguíamos para o hotel em Munique. O taxista vietnamita disse que a BMW azul que fechou nosso carro nos seguia desde o aeroporto. "Polizei". Não devíamos nada. Mas, convenhamos, tomar uma geral num país em que você acaba de chegar e não sabe sequer uma palavra do idioma preocupa. 


Passport, please.

Entregamos os documentos sem sair do carro.

Silêncio.

Brasileiros! 

Só faltaram pular.

O que vocês estão fazendo aqui?, disseram em inglês, graças a Deus. Imediatamente, a cara de mau deu lugar a um sorriso amistoso e  começaram a falar de futebol. A Alemanha ainda não havia eliminado o Brasil. Faltavam algumas horas para a seleção deles estrear na Copa. Os tiras deram boas-vindas e nos liberaram sem abrir nenhuma mala ou fazer qualquer pergunta que não fosse relativa a Felipão, Neymar e Dante (descobri naquele momento que ele joga no Bayern). 

A identidade do Brasil no exterior é sim marcada pelo futebol. Com exceção a um casal francês, anos atrás, que me perguntou sobre Oscar Niemeyer, sempre quando algum gringo recém conhecido enaltece o Brasil o tema é a bola. Pelo menos antes dos 7 a 1 era assim.  

Como os policiais alemães, todos os estrangeiros que conhecemos na viagem não acreditavam que estávamos longe do Brasil justamente quando o Brasil sediava o mundial. Eu explicava que já gostei muito desse esporte, mas que andava desiludido. Falava também da relação entre a nossa política e o futebol, da histórica alienação do povo, da megalomania desta Copa, dos gastos excessivos com estádios e toda aquela ladainha que cansamos de repetir. Mas foi só a bola começar a rolar pra eu me mobilizar até a TV mais próxima e, claro, torcer pela nossa seleção. 

Foto: Romeu Piccoli
Campo de Concentração/Dachau
Acompanhar uma copa longe do Brasil é uma experiência bem diferente. Na Alemanha estávamos em casa no quesito paixão ao futebol. Nossos algozes são tão fanáticos quanto nós. Bandeiras nos carros, nas janelas, nos bares e muita gente uniformizada e com a cara pintada em dia de jogo. Eles só não me pareceram tão alienados. Devido ao fuso horário na Europa, nesta Copa, os jogos aconteciam à noite. Se fossem de dia, as empresas não parariam de funcionar, nem os trabalhadores seriam dispensados, mas todo mundo daria um jeito de acompanhar as partidas da seleção germânica, explicaram alemães com quem conversamos.  

Incrível como um país que ficou marcado pelo massacre aos judeus simplesmente porque eram judeus— e que na Guerra Fria jogou no lixo os direitos individuais da população que vivia contida por um muro em sua metade oriental, hoje leve tão a sério a palavra respeito. Museus se proliferam pelas grandes cidades alemãs. Principalmente, sobre temas que eles não têm do que se orgulhar. Campos de concentração são mantidos para visitação. É como se fosse um alerta. Nós erramos e não podemos errar de novo, embora muitos ainda não tenham se livrado dos antigos preconceitos.

Foto: Romeu Piccoli
Campo de Concentração de Dachau

A campanha do time alemão na Copa é um retrato do que o país busca ser atualmente. Objetivo, eficiente, alegre (sim, eles são muito alegres) e respeitoso. Imagine se o Brasil estivesse ganhando de 7 de qualquer seleção. Neymar e companhia abusariam das firulas, dos dribles desnecessários, embalariam no coro de olé. Os alemães, pelo contrário, nos deram uma goleada de respeito. Não me parece que tudo isso seja apenas uma jogada de marketing para melhorar a imagem da pátria. Se for, é feita com maestria. De toda forma, a Alemanha mostrou que temos muito o que aprender com o atual país do futebol. E não só sobre futebol.

Foto: Romeu Piccoli
Grafites no trecho preservado do Muro de Berlim

Por Romeu Piccoli