sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Voa, arara


Fotos: Romeu Piccoli
Como é bonito o voo das araras. Um balé aéreo. Batidas longas de asas, espaçadas. Flutuam. Não é apenas uma necessidade de locomoção, de busca pelo alimento. É uma diversão. Elas brincam, namoram no ar e com o ar.

Mas, na minha infância, ver uma arara voando no céu de Praia Grande, a mais de 1000 quilômetros da região onde vivem essas aves, virava motivo de desespero. Era a minha arara, a minha companheira desde o meus 2 anos de idade. Lá ia eu correndo subir nas altas árvores de joão bolão pra buscar a bonitona. Ela se alegrava em me ver. Depois da operação de guerra pra pegá-la e levá-la de volta pra casa, ela ficava de mal da gente por uns três dias. Tempo suficiente pra esquecer que tínhamos proibido ela de fazer sua dança e voltar a nos acordar com gritos de Netôoooo (eu), Juuuu (meu irmão mais velho) e manhêeee!

Sonhei muitas vezes que outra arara tinha aparecido em casa e fazia companhia a ela. Outras, acordei assustado achando que ela tinha voado. Alguns desses sustos eram fruto da minha confusa mente adormecida. Outros, tinham fundamento. Pelo barulho das asas, eu sabia que ia ter trabalho pra buscá-la. E tinha. 

Meu pai chegou com a arara em casa em 1972. Ela nunca ficou em gaiola e nem com corrente na pata. Ficava solta nas árvores do quintal (destruiu várias, só a goiabeira resistiu à força do seu bico de alicate). Nós fazíamos algo que hoje considero um crime. Cortávamos a pontinha das penas de uma das asas. Sem equilíbrio, privavamos a ave de sua principal atividade. Como era uma situação que estressava a nós e a ela, a poda só era feita quando voava. 

Depois de uns 15 ou 20 anos com ela na família paramos de aparar as penas. A arara não voava mais. Desistiu de seu balé. Cansou de procurar o parceiro que nunca apareceu. As araras são monogâmicas. Não sei se ela foi separada de seu par que, talvez, a espere até hoje. 

Justamente quando ela abriu mão de seu voo, eu torcia pra ela voar. Eu a amava e, já ficando adulto, entendia que era um egoísmo tê-la de enfeite no quintal. Embora ela nunca tenha sido um enfeite. Sabia que a arara seria mais feliz voando, mesmo que vivesse menos. Não voou. E viveu muito. 

Ela se resignou ao cativeiro. Essa palavra é ótima para definir o local onde as pessoas sequestradas são mantidas. São como animais obrigados a ficar onde não gostariam de estar. 

Espantando o intruso da goiabeira
A arara se rendeu a viver no meio das pessoas. Só que, geniosa, nunca perdeu o orgulho, a pose. Reinava soberana na goiabeira. Só deixava chegar perto quem ela queria. Todos os cachorros, gatos e pessoas que não respeitaram a sua vontade sentiram o peso daquele bico dilacerador.  

Gritava, fazia o escândalo que queria, na hora em que queria. Aprendi que a arara faz barulho quando está feliz. Nos últimos nove anos, morando em São paulo, meu contato com ela passou a ser semanal, quinzenal ou até mensal. Mesmo assim, quando eu chegava na casa da minha mãe sempre tinha um alarido danado. Ela me chamava pra árvore, berrava. Se divertia mesmo sem voar. Nos útlimos tempos, mesmo doente, ainda dava seus gritinhos.  

 Da próxima vez que eu for lá, a velha goiabeira estará sozinha.  Não vai ter barulho. A casa da minha mãe vai  estar em silêncio. Um silêncio que não se ouvia há 43 anos. 

Voa, arara.

Por Romeu Piccoli
     

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