segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Quarenta e nove

Há exatos quatro anos eu reclamava das dores no corpo depois de quatro sessões de surf numa mesma semana. Agora, a queixa é que a dor é mais forte apesar dos seis meses sem conseguir ficar em pé na prancha.

No meu aniversário, em 2015, eu escrevi que havia chegado aos 45…do primeiro tempo. Achava, na época, que aos 49, estaria no último minuto dos acréscimos da primeira etapa. Enganei-me. O último disco da coluna lombar escancarou a fadiga desse corpo velho de guerra que há tanto tempo suporta as minhas extravagâncias. 

Dizem que as dores são avisos do organismo. Confesso, fazer-me de surdo é uma estratégia  de que abuso. Em tempos atuais, então, fiz da surdez seletiva um mantra.

Se eu tivesse dormido no meu aniversário de 2015 e só acordasse agora, pensaria ter voltado no tempo. Quando eu poderia imaginar quem em 2019 o discurso da guerra fria teria sido ressuscitado no Brasil? E com um monte de malucos levando a sério! Que artistas seriam censurados? Que a amazônia continuaria queimando, mas agora com chancela oficial? E que os mesmos malucos aplaudissem os piromaníacos com os carcomidos argumentos do progresso e da soberania nacional! E que eles, os malucos, tomassem como verdades absolutas tudo o que um tal de WhatsApp diz?

Ainda bem que agora tem a Catarina. Quatro anos atrás eu não tinha filho, lenço nem documento. E como é bom ver o progresso de um ser tão gente boa quanto ela. Não discrimina ninguém, brinca com todas as crianças que encontra, distribui beijos e sorrisos pra todo mundo.

É a Catarina que tem me feito sorrir nesta semana pós-cirurgia de coluna. Imagino a geração dela incrédula com a idiotice da minha. 

Vou comer um pedaço de bolo e brindar com uma cápsula de Tramal. Depois, vou tirar um cochilo considerando os 49 apenas um intervalo. O segundo tempo começa aos 50.

Por Romeu Piccoli

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Treze minutos

(Catarina - Capítulo 1)

Catarina saindo do hospital com o lacinho de
perua, presente das enfermeiras e técnicas da UTI.

Em 13 minutos a Alemanha fez 4 gols no Brasil, Kelly Slater tirou duas notas 10 no Taiti, 2.340 pessoas nasceram no mundo, outras 1.326 morreram. Esse foi o tempo que o coração da Catarina levou pra voltar a bater, que o pulmão dela demorou pra oxigenar o resto do corpo. Em 13 minutos a minha filha renasceu. 

Era 24 de dezembro. Eu cheguei em casa com o peixe que prepararia pra ceia. A Patrícia disse que sentia uma dorzinha na barriga de 32 semanas de gestação. A dor aumentou. Dentro do carro, a caminho do hospital, o tormento ficou insuportável. 

Fábio Califre, o médico de plantão, não conseguiu escutar o coração da nenê. Correu pro ultrassom e percebeu um leve movimento cardíaco. "Tá de bradi, tá de bradi, prepara o centro cirúrgico imediatamente!". Catarina estava com bradicardia. O coração batia muito fraco, quase parando. Correria no hospital. Patrícia recebeu anestesia, mas não dava tempo pra esperar o medicamento agir. Ela sentiu a dor do corte na barriga. Ficou firme. A mim restava segurar a mão da segunda mulher mais corajosa do mundo naquele momento. A primeira era a Catarina.

Catarina foi retirada da barriga da mãe às 16h12 da véspera do Natal. Não chorou, não respirou, não se mexeu. O coração não batia mais. O teste de Apgar é uma escala de zero a 10 para avaliar a vitalidade do recém-nascido. O Apgar da minha filha era zero. 

Na sala ao lado da do parto, três médicos tentavam reanimá-la. Usaram todas as técnicas possíveis pra trazê-la de volta. Foram 13 intermináveis minutos até Catarina voltar a respirar. O médico me perguntou se eu sabia o que uma reanimação de 13 minutos significava. Eu achava que sabia. Ele me disse que não podia me prometer nada, apenas que o hospital faria o melhor possível. Quem daria a resposta seria a própria Catarina. Na realidade, ela já havia dado.  

Eu só entendi essa resposta de madrugada, na UTI, quando a bebê começou a se mexer. Frenética, ela batia as mãos na infinidade de eletrodos, tubos e acessos grudados naquele corpinho de 40 centímetros. Ela tinha decidido viver.   

Foi difícil. Em 55 dias de UTI e dois de semi-intensiva, Catarina levou mais de 100 picadas. Recebeu quase uma dezena de transfusões de sangue. Enfrentou insuficiência renal, problema no fígado e anemia. Pegou uma bactéria, que gerou infecções no tórax e na perna. Passou por dois ciclos longos de antibióticos, tomou remédios fortes. Teve, pelo menos, uma convulsão. Sofreu uma hipoxia-isquemia e uma hemorragia no cérebro. Superou tudo.  Entrou na UTI com 1,405 kg, caiu para 1,2 kg e saiu com 2,2 kg.

Na semana passada, ela passou por uma ressonância magnética no cérebro. Os médicos sempre foram muito competentes e realistas. Nenhum deles se arriscava a dizer que nossa filha teria alta sem sequelas. Eu me preparei pras consequências.  

Sabe de nada, inocente! A ressonância mostrou que todas as lesões cerebrais foram absorvidas pelo organismo. Hoje, estamos indo pra casa. Temos uma maratona de acompanhamentos pela frente com fisioterapeuta, fonoaudiólogo, pediatra, cardiologista, neurologista, ortopedista, otorrinolaringologista e mais alguns “istas” que eu devo ter esquecido de citar. Mas, fora um exame que detectou algo diferente na audição (pode ser imaturidade devido ao nascimento prematuro), não há nada que indique um problema futuro. 

Bora, filha. Esse foi só o primeiro capítulo de um livro enorme e nada entediante que você começou a escrever. Aqueles 13 minutinhos, aqueles 57 dias não foram nada. Você ainda tem a vida inteira pra continuar me ensinando um monte de coisas.   


Por Romeu Piccoli

sábado, 20 de agosto de 2016

Ele é só uma criança




No ano passado, foram as fotos do corpo de outro menino sírio estirado na areia da praia - depois do naufrágio de um barco de refugiados que partiu da Turquia rumo à Grécia - que nos afligiram. As imagens rodaram o mundo. Chocaram o mundo. Alan Kurdi*, o nome dele. Mas, podia ser Pedro, Lucas, Gabriel. Aos 3 anos, Alan era muito parecido com nossos filhos. Vestia camiseta vermelha, bermuda azul e tênis. 


Menos de um ano e meio se passou e a gente se depara novamente com uma imagem avassaladora. O garoto que tenta enxergar a guerra apesar do sangue que lhe escorre sobre os olhos tem nome árabe: Omran Daqneesh. Mas, ele também se pareceria com os nossos, a não ser pelo fato de que não chora diante do horror. 

Omran aparece sentado na cadeira de uma ambulância aplacado pelo choque ou pela resignação de quem convive com a guerra. Sem os pais, coberto do pó da destruição e do sangue da violência, ele não se desespera. Não grita. Não se encolhe de medo. Não soluça.

Aonde foi parar o instinto desse garoto? Quanto mal e quanto medo ele enfrentou, nos poucos 4 anos de vida, para chegar até aqui com tamanha tolerância? 

O mundo precisa de crianças que chorem diante do perigo. Crianças que só se deitem na areia da praia sobre toalhas limpas e sob o olhar dos pais. Crianças que se sujem de pó apenas quando furam um saco de farinha. E que só tenham o rosto pintado de vermelho se for por tinta em dias de festa e carnaval. 

Para o pequeno Alan e tantos outros, já não há mais tempo. Ninguém no mundo foi capaz de evitar que enfrentassem os mares revoltos, as caminhadas extenuantes, os disparos de fuzis, os bombardeios. Mas, quantos Omrans sobrevivem todos os dias ao horror? Quem está preocupado com a vida deles? 

É inaceitável dormir depois de ver imagens como essas. É repugnante comer diante da TV que exibe essas cenas. Precisamos nos revoltar, debater, gritar. As autoridades mundiais têm que abrir os olhos para essa situação. Não se pode permitir que a insanidade de uns destrua o futuro de tantos.

Muito além do combate ao Estado Islâmico, com bombardeios e a reconquista de territórios ocupados, é importante que as nações se abram para receber os refugiados. Vamos oferecer a nossa solidariedade. Nossas casas, roupas, parques, praças, empregos e escolas. Vamos ensinar nosso idioma.

Se não for por compaixão, que seja por egoísmo. A humanidade está preparada para as consequências de uma geração que artificialmente tolerou a morte e a ruína? Porque a revolta, meus caros... A revolta há de surgir, cedo ou tarde, na vida de quem é massacrado sem saber por quê.

Por Patrícia Ferraz



*No princípio, foi divulgado o nome Aylan. Mais tarde, a família retificou.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Voa, arara


Fotos: Romeu Piccoli
Como é bonito o voo das araras. Um balé aéreo. Batidas longas de asas, espaçadas. Flutuam. Não é apenas uma necessidade de locomoção, de busca pelo alimento. É uma diversão. Elas brincam, namoram no ar e com o ar.

Mas, na minha infância, ver uma arara voando no céu de Praia Grande, a mais de 1000 quilômetros da região onde vivem essas aves, virava motivo de desespero. Era a minha arara, a minha companheira desde o meus 2 anos de idade. Lá ia eu correndo subir nas altas árvores de joão bolão pra buscar a bonitona. Ela se alegrava em me ver. Depois da operação de guerra pra pegá-la e levá-la de volta pra casa, ela ficava de mal da gente por uns três dias. Tempo suficiente pra esquecer que tínhamos proibido ela de fazer sua dança e voltar a nos acordar com gritos de Netôoooo (eu), Juuuu (meu irmão mais velho) e manhêeee!

Sonhei muitas vezes que outra arara tinha aparecido em casa e fazia companhia a ela. Outras, acordei assustado achando que ela tinha voado. Alguns desses sustos eram fruto da minha confusa mente adormecida. Outros, tinham fundamento. Pelo barulho das asas, eu sabia que ia ter trabalho pra buscá-la. E tinha. 

Meu pai chegou com a arara em casa em 1972. Ela nunca ficou em gaiola e nem com corrente na pata. Ficava solta nas árvores do quintal (destruiu várias, só a goiabeira resistiu à força do seu bico de alicate). Nós fazíamos algo que hoje considero um crime. Cortávamos a pontinha das penas de uma das asas. Sem equilíbrio, privavamos a ave de sua principal atividade. Como era uma situação que estressava a nós e a ela, a poda só era feita quando voava. 

Depois de uns 15 ou 20 anos com ela na família paramos de aparar as penas. A arara não voava mais. Desistiu de seu balé. Cansou de procurar o parceiro que nunca apareceu. As araras são monogâmicas. Não sei se ela foi separada de seu par que, talvez, a espere até hoje. 

Justamente quando ela abriu mão de seu voo, eu torcia pra ela voar. Eu a amava e, já ficando adulto, entendia que era um egoísmo tê-la de enfeite no quintal. Embora ela nunca tenha sido um enfeite. Sabia que a arara seria mais feliz voando, mesmo que vivesse menos. Não voou. E viveu muito. 

Ela se resignou ao cativeiro. Essa palavra é ótima para definir o local onde as pessoas sequestradas são mantidas. São como animais obrigados a ficar onde não gostariam de estar. 

Espantando o intruso da goiabeira
A arara se rendeu a viver no meio das pessoas. Só que, geniosa, nunca perdeu o orgulho, a pose. Reinava soberana na goiabeira. Só deixava chegar perto quem ela queria. Todos os cachorros, gatos e pessoas que não respeitaram a sua vontade sentiram o peso daquele bico dilacerador.  

Gritava, fazia o escândalo que queria, na hora em que queria. Aprendi que a arara faz barulho quando está feliz. Nos últimos nove anos, morando em São paulo, meu contato com ela passou a ser semanal, quinzenal ou até mensal. Mesmo assim, quando eu chegava na casa da minha mãe sempre tinha um alarido danado. Ela me chamava pra árvore, berrava. Se divertia mesmo sem voar. Nos útlimos tempos, mesmo doente, ainda dava seus gritinhos.  

 Da próxima vez que eu for lá, a velha goiabeira estará sozinha.  Não vai ter barulho. A casa da minha mãe vai  estar em silêncio. Um silêncio que não se ouvia há 43 anos. 

Voa, arara.

Por Romeu Piccoli
     

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Quarenta e cinco

 Os olhos abriram antes de tocar o despertador, aquela maquininha que agora tira foto, grava vídeos e navega na internet. Ah, ainda dá pra fazer ligações telefônicas, inclusive vendo a pessoa que está do outro lado da linha. Ficção científica, eu diria 20 anos atrás. Naquela época, "ficção" vinha acompanhada de "científica".

20 anos atrás, meus olhos jamais abririam antes do despertador, aquele aparelhinho que apenas marcava as horas e me acordava. Estranho. Antes, eu tinha mais energia e precisava dormir mais.

A dor era uma fulana que eu só cumprimentava quando tomava alguma pancada. Agora, troco ideia com ela quase todos os dias. Hoje, por exemplo, depois que acordei e estiquei o braço pra pegar aquela maquininha que também marca as horas, ela deu bom dia pra mim. Estava agarrada nos meus ombros e nas minhas costas. 
Hoje, a dor me cobrava as quatro sessões de surf em uma semana. Como ousei!? 20 anos atrás, surfar todos os dias não era ousadia. Não tinha cobrança. Não doía nada.

Mas isso não é queixa. O tempo, mano velho, agora corre macio. Não tem inquietação.  

Depois de ver as horas naquela maquininha, abri uma foto do dia anterior. Cinco amigos. Todos com mais quilos e menos cabelos do que 20 anos atrás. Todos com avenidas rugosas marcadas no rosto. Mas todos na praia. Com sorriso aberto. Sorriso que já estava escancarado antes da foto (tirada com o aparelhinho). 

Levantei. Meu aniversário. Eu nem perceberia que já faz tanto tempo se não fossem a tal maquininha moderna, as dores no corpo e a esposa dormindo profundamente. Com 14 anos a menos, ela sempre dorme algumas horas a mais do que eu. 

Dei uma espiada pela janela. Do 28 andar vi a selva de pedra. Não sofri. É bonita a seu modo, embora não se compare à vista do mar.

Chequei as horas na maquininha. Antes, quando olhava o relógio, queria que os ponteiros andassem rápido. Tinha pressa. Agora, sei que cada minuto a mais é um minuto a menos. Por isso, curto mais cada minuto.

O tempo que eu levo pra fazer as coisas já não importa. Desde que seja um tempo bom.  

Cheguei aos 45. Do primeiro tempo.

Por Romeu Piccoli

"A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer." Arnaldo Antunes

 

quinta-feira, 26 de março de 2015

O melhor é não ter tempo


Foto: Romeu Piccoli
Não por minha conta, descobri que a culpa é do tempo. Desigualdade, corrupção, violência, medo, doenças, morte. Claro. A morte, pelo menos a de velhice, é sempre culpa do tempo que passou, geralmente depressa tanto pra quem vai, quanto pra quem fica.


Mas não quero falar da morte. Quero falar da minha epifania ao descobrir que o tempo é o algoz mor. Foi num livro. Um livro fino, barato, com pinta de autoajuda e poder de livro de profecias. Um livro até repetitivo. Porque necessário. O assunto é complexo demais pra ser dito uma única vez. (Sempre achei uma redundância absurda dizer "uma única", mas nunca encontrei uma expressão suficiente pra essa exata ideia.) Voltando... Para mentes aprisionadas pela noção do tempo, como a maioria de nós, é preciso repetir mesmo. Ad infinitum. Como um mantra. 

Vamos lá. Pense rápido: Quem é você?

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|tome alguns segundos tentando responder à pergunta
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Sua resposta? Sou ________ (profissão), filho(a) de fulano e ciclana, casado(a) com beltrano(a), amigo(a) de X, adoro isso, aquilo... Odeio tal coisa e meu sonho é tal.

É? Isso é você? Pergunto de novo: quem é você? Resposta difícil, né? Você pensa no que já fez na vida. Faculdade assim, pós-graduação assado. Pensa na sua família. No seu cargo. No seu passado. Na sua religião. No seus sonhos. Pensa nos papeis que exerce. Mas esses papeis te definem? Não. É o conjunto de tudo isso, né? 
...
Será?

Esse exercício reflexivo pode parecer chato, mas vale a pena. Talvez esteja na hora de saber: você não se resume e nem se define a partir de nada disso. Você também não é o que come e muito menos o que pensa. O que você come pelo menos se transforma no substrato que vai constituir o seu corpo depois de alguns processos físico-químicos. Vá lá. Integra as suas células. Mas ainda não é suficiente. O que você pensa passa longe de expressar com fidelidade a sua essência. Os pensamentos são o ego. Um dublê de si, colado a você 24 horas, sem te deixar brecha um minuto sequer para se perceber. É como aquelas pessoas que não param de falar um segundo. Você não consegue fazer mais nada. Só fica ali, a ouvir. 

Com o tempo, o incômodo aumenta. Você se distrai, mas jamais consegue findar o monólogo. Essa é a sua mente. Aquela visita inconveniente, falante. Prolixa. Geralmente maldosa e pessimista. Adora te manter em assuntos assustadores, temerosos, paradoxais, e, principalmente, no passado e no futuro. Bem longe do agora.

A mente é aprisionada no modelo de divisão da vida em frações de tempo. Pensamos o que vamos comer no jantar, como serão as próximas férias, onde estivemos ontem, porque a semana que vem não chega logo. Choramos porque pode ser que... 

Você já sofreu por um motivo que não existe, uma mera possibilidade? Eu já. Já chorei imaginando a morte da minha mãe pelo menos uma centena de vezes, desde que me lembro por gente. Ela viajava ou demorava a chegar ou ficava gripada e pronto. Eu chorava de medo. Você pode dizer: "Ah, mas isso é coisa de criança. Normal." Ok. E você, adulto, nunca perdeu o sono porque na semana que vem o dinheiro da conta acaba? Ou porque seu pai está no hospital "à beira da morte"? É. À beira da morte significa: vivo. À beira da morte significa: ele pode estar em estado grave, mas não morreu e portanto pensar em morte é pensar no futuro. É em nome desse futuro que existe uma palavrinha amaldiçoada chamada preocupação. É um diabo! Quem nunca usou o hoje para sofrer pelo amanhã? É ótimo. A gente perde hoje e amanhã, numa tacada só. Boicote espertíssimo da mente dublê.

Imagem: Blog Coluna do Lam
Agora, sim, a epifania. Não conseguimos responder à pergunta porque tentamos racionalizar, pensar, usar a linguagem para entendermos quem somos. E a mente está presa no molde milênio/ século/ década/ lustro/ ano/  mês/ semana/ dia/ hora/ minuto/ segundo. A mente está presa nas grades do calendário. Não consegue pensar além.

E é além o lugar em que você se encontra.  Além da mente, além do corpo. A sua essência precisa de silêncio pra ser sentida. Silêncio fora, e, principalmente, dentro de si. Sua mente precisa calar. Parar o burburinho incessante. Não falo de dormir. Porque dormindo ela nem sempre para realmente. Falo de silenciar a mente. Como? 

Depois de um tempo com meu marido compreendi que o vício dele em surf tem uma resposta muito abstrata e ao mesmo tempo prática, óbvia: é o momento em que ele se encontra ALÉM do burburinho da mente. Pra algumas pessoas, o esporte. Pra outras, o orgasmo ou a religião. Pra todas: a meditação. 

Foto: Patrícia Ferraz
A maneira mais eficaz de se encontrar com a própria essência (e isso só ocorre silenciando a mente dublê) é meditando. Não sou eu, pobre aspirante a meditante praticante (desculpe a rima, foi intencional mesmo, pra destreinar a sua mente previsível - ou a minha), não sou eu que digo isso. Não sou louca de sair divulgando uma fórmula do autoconhecimento que eu tenha acabado de inventar e ainda nem consiga praticar. Quem disse isso foi o bendito autor do bendito livro que citei no começo. O PODER DO AGORA, Eckhart Tolle.

Diz o meu novo guru, portanto, que basta meditar. Pode ser por meio da observação do silêncio, pode ser focando no espaço. Tanto faz. O importante é sentar-se confortavelmente, fechar os olhos, silenciar os pensamentos e esvaziar a mente.  Puta que o pariu! Isso é muito difícil de conseguir. É. Difícil mesmo. Mas não é impossível. Tem um monte de gente que consegue, principalmente no lado oriental do globo. Meditação, para o autor, é o banho diário de que a mente precisa, o asseio indispensável. Esporte, religião, sexo são banhos de gato. Melhoram um pouquinho a condição, mas não chegam a limpar completamente...

O efeito imediato da meditação, pelo que entendi, é trazer o ser para o agora e portanto para a percepção da sua essência. Isso não significa que o meditante vai conseguir DIZER: eu sou X. Significa que ele vai SENTIR quem é, vai se EXPERIMENTAR. Vai saber sair de si, observar-se, controlar a mente. Vai fazer escolhas mentais. Aproximar-se da força maior do universo, do Bem, de Deus, ou do que quer que você acredite ser a energia pulsante que garante a vida. Este último resultado, geralmente, só a longuíssimo prazo.

Imagem: Blog Pensando em Retalhos
Quando você (e eu, claro) conseguirmos  nos aproximar da nossa essência, experimentar o agora, silenciar a mente, todos nós vamos deixar de lado o MAL. A inveja, a cobiça, a ambição desmedida, a maledicência, o rancor, a mágoa, o medo. Sem a noção do tempo (memória e expectativa), vivendo apenas o agora e a nossa essência, conseguiremos tirar do caminho o sofrimento psicológico que impomos a nós e aos outros. Acaba a angústia de estar vivo, toda ela baseada no tempo, esse trenzinho traiçoeiro que promete levar a uma paisagem linda, circulando por trilhos tortuosos e caminhos rochosos, e nunca chega.

Sem o tempo, o que fica? O que você tem ao seu alcance, sempre? A cada minuto da sua vida? Desde o nascimento até a morte?

O agora. Somente o agora. Sempre o agora. A cada segundo. O agora é uma brecha no tempo, uma brecha bendita que você pode se dar de presente para a sua própria felicidade. PERMANENTEMENTE.

Por Patrícia Ferraz


p.s.: Se você não concorda com nada disso, ficou confuso, tenso, revoltado, curioso, ansioso ou pode ter o estado de ânimo descrito com qualquer adjetivo que não seja sinônimo de indiferente, leia o livro. Não é propaganda. Não vou ganhar dinheiro com isso. Mas acredito que, de tabela, acabo ganhando alguma coisa. Nem que seja a longuíssimo prazo.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Eles não querem ouvir



Foto: Blog Os Hermanos
Ok, foi um panelaço de coxinhas.

Um panelaço entoado das varandas gourmet, em bairros ricos ou de classe média alta. 

Muitos dos que moram nestes bairros só chegaram ao atual endereço e às sacadas com churrasqueira nos últimos 12 anos. Mas também fizeram barulho. 

Foi um movimento da tal elite branca? Ao que parece, foi. 

Foi uma manifestação injusta? Não.

O PT enfrenta o ódio político das classes abastadas, por tê-las destronado. É fato. 

Mas é por Lula e Dilma governarem para os mais pobres que o movimento anti-PT cresce? Não.

Por mais que os abonados torçam o nariz para as estradas e aeroportos lotados pela nova classe média, eles não teriam fôlego pra tanto alarido.

A grande imprensa é tucana? É.

Os escândalos em que o governo se envolveu foram criados por empresas de comunicação interessadas em derrubar o PT? Não.

Os escândalos vieram à tona porque o PT se transformou em um partido corrupto.

Se os mesmos esquemas tivessem sido orquestrados pelo PSDB teriam sido divulgados e tratados pela Justiça como foram o mensalão e o petrolão? Talvez não. Isso justifica os atos de PT e aliados? Com certeza não.

O protesto foi armado pela oposição, que não deve nada em sujeira para o PT? Provavelmente foi. O sucesso da barulheira foi só porque a direita soube  organizar? Não.

A impopularidade de Dilma não se deve ao Bolsa Família, tão criticado pelos playboyzinhos e patricinhas que sempre tiveram comida nas panelas em que hoje batem.

As panelas ─ de teflon, como ironizaram os defensores do Planalto ─ ecoaram tão alto porque a presidente Dilma não tem conseguido escutar o povo. O povo todo! Não só os riquinhos dos Jardins estão fartos da corrupção, da mentira.   

A candidata que acusava o adversário de querer tirar os direitos dos trabalhadores fez exatamente o que criticava, imediatamente após ser reeleita. Nem corada ficou. 

A candidata que prometia combate à corrupção (antes tarde do que nunca), quando reeleita, nomeou um corpo de ministros de fazer inveja a Paulo Maluf e Fernando Collor. Aliás, dois dos novos companheiros. Diga com quem andas...   

Vejo colegas que ainda acreditam no Partido dos Trabalhadores criticarem o panelaço. É uma defesa legítima da causa que eles abraçam.

Mas o panelaço, companheiros, também é legítimo. Transcrevo aqui as palavras do amigo Marcos de Guide, que não tem nada de coxinha: "...pra mim foi um belo espetáculo democrático. O brasileiro precisa aprender de vez que democracia não é só ir lá na urna, votar, e depois esquecer até para quem foi o seu voto. Democracia é se manifestar quando estiver satisfeito com o governante e ─ principalmente ─ quando não estiver."

Nossos governantes precisam começar a escutar o barulho da democracia. Mesmo os que já gritaram por ela, pelo jeito, andam surdos. 

Por Romeu Piccoli

sábado, 4 de outubro de 2014

Brasil FC

Charge: Jornal de Uberaba
Não é um campeonato de futebol. Mas boa parte do eleitorado age como torcida. Não importa se o time joga mal, se o juiz roubou, se o passado condena o clube. O que vale é vencer. A pessoa escolhe um lado para torcer e ignora todos os seus defeitos. Define um rival para combater e o ataca com toda fúria e preconceito. Uma rápida olhada nas redes sociais confirma a tese das eleições-campeonato. 

Só pra citar os três principais candidatos ao título de Presidente: 

1- Dilma é criticada pelos torcedores tucanos por ter sido guerrilheira. Mas, convenhamos, se ela tivesse conservado os ideais da época em que acreditava nos princípios românticos da esquerda, não seria conivente com a corrupção orquestrada pelo PT atualmente. Mais dos reclamões: os projetos sociais implantados pelo partido, inegavelmente importantes para o País, são tachados de assistencialistas por uma elitizinha (que, em muitos casos, nem elite é). Já a torcida dilmista fecha os olhos. Não enxerga as quadrilhas que existem no Partido dos Trabalhadores e não são combatidas internamente. É um povo que ainda acha descolado usar camiseta com imagem do Che Guevara e defende a ditadura, desde que seja a cubana. O novo eleitorado do antigo "rouba, mas faz".

2- Quanto a Marina, tucanos e petistas se juntam para alardear a religiosidade da candidata como um desvio de caráter. Vejo gente comentando como crime o fato dela abrir a Bíblia antes de uma decisão importante. Ora, qual o problema de alguém rezar o Pai Nosso, pedir proteção aos orixás ou meditar em frente a uma estátua de Buda? Nenhum, desde que a pessoa não seja fanática. E Marina não tem o menor traço de fanatismo. O aparente despreparo da ecologista, o improviso do programa de governo, as mudanças eleitoreiras de opinião e o partido de aluguel, que são as fragilidades reais da candidatura, ficam em segundo plano entre os críticos. Os marineiros, por sua vez, se recusam a reconhecer essas falhas e as empurram para debaixo da terra. 

3- Aécio tem no suposto consumo de cocaína o principal combustível para os ataques da torcida adversária. Só não conheço quem tenha provas de uma internação ou mesmo de uso esporádico do entorpecente. Esses mesmos críticos fingem que não foi o PSDB que controlou a inflação surreal do Brasil. Por outro lado, os defensores do mineiro minimizam os 14 milhões de reais liberados pelo então governador Aécio para o aeroporto na fazenda do próprio tio, o mensalão do PSDB em Minas Gerais e a roubalheira que foi a privataria nos Governos FHC. Para os engomadinhos tucanos só a corrupção petista é vergonhosa. 

Com a disputa acirrada entre os líderes, o show sobrou para os pequenos. A radical Luciana Genro; o bicho-grilo Eduardo Jorge; a marionete do Aécio, Pastor Everaldo e o imbecil do Levy Fidelix tocaram em assuntos polêmicos de que o G3 se esquivou para não perder votos.

Domingo é o dia. Seria bom se todos lembrassem que política não é futebol. E que urna não é latrina, embora muita gente não se importe em fazer do voto  produto do aparelho excretor. Que vença o melhor. Ou o menos pior.

Por Romeu Piccoli

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Quadriamor*

Nem foi preciso apertar a mão dele, logo quando cheguei à casa, para saber que suava. Suava de nervoso. Wesley tinha acabado de descobrir que seria pai de quadrigêmeos. Quatro bebês de uma só vez. Não fosse o choro da noiva, ele nem teria acreditado, teria dado risada com o telefonema dela. "Amor, são quatro bebês. O que vamos fazer agora?"

Ele, funcionário de um mercadinho no extremo norte de São Paulo. Ela, operadora de telemarketing. Juntos não ganham mais do que R$3.500. "Se fosse um bebê, era super natural. A gente ia alugar uma casa. Mas, mas com 4, não tem como", explica ele, com os olhos permanentemente em movimento. O jovem de 27 anos ainda não tem jeitão de pai. Parece agitado. Às vezes, meio perdido. Talvez, assustado com toda a responsabilidade que o espera.

Carol, a noiva, também tem cara de menina. Os dois planejavam se casar, juntar dinheiro, ter o próprio espaço. Filhos eram um projeto de futuro. Um futuro que chegou muito antes do esperado, apesar dos 11 anos de relacionamento. O namoro da adolescência teve algumas rupturas, mas venceu o tempo. E, no primeiro encontro com o casal, qualquer pessoa já consegue entender por que. Carol e Wesley se gostam. Se tocam. Trocam olhares cúmplices. Em uma ou duas horas de conversa, constatei que os dois estão realmente juntos. Fiquei aliviada pelas crianças. É bom nascer de um amor que sobrevive.


Primeiro dia de gravação com o "Casal Quádruplo"
O sexo dos bebês ainda é uma incógnita. O que se sabe é que serão os quatro idênticos. Para Carol, melhor se forem meninas. A jovem de 26 anos ganhou uma rotina de enjoos e perdeu o sono. Na cama, fraldas, macacões, calças de bebê ocupam o espaço que os ursinhos de pelúcia perderam. A decoração cor de rosa do quarto de solteira estaria apropriada para receber os filhos, não fosse o tamanho da família. Carol divide o quarto com a irmã, Cátia, de 24 anos. Mas é por pouco tempo. Quando os quadrigêmeos nascerem, os pais de Carol vão ceder a suíte da casa para a nova família. Dona Carlita vai dormir no quarto de Cátia. E, o marido dela, com o filho caçula, Carlos Henrique, de doze anos. É o primeiro de muitos arranjos que a família vai ter de fazer para dar conta do recado.

A vinda dos quadrigêmeos deixa uma certa apreensão no ar. Uma mistura de preocupação, medo e ansiedade. São muitos meses pela frente. Exames, descobertas, desafios. A única certeza do casal, por enquanto, é a vontade de estar junto. "O Wesley já era carinhoso, agora tá mais ainda. Se ele me ligava cinco vezes, agora liga dez. Tudo dobrou." Carol entende bem de sentimentos, mas errou na conta. O amor não dobrou, Carol! Quadruplicou!

*Bastidores desta reportagem exibida pelo programa Domingo Espetacular, da Rede Record.


Por Patrícia Ferraz

terça-feira, 22 de julho de 2014

Feminista, sim, e mulher

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Cabelão e franjinha, cinco anos de idade, uniforme de malha e tergal, verão de 35°. Era hora da diversão. A escola levava os alunos para uma área conhecida como Campão: um imenso gramado com as mesmas medidas de um campo de futebol profissional. Ali, suada depois da brincadeira, meus desejos eram dois: beber uma garrafa d’água geladíssima e tirar a camisa. Só consegui satisfazer o primeiro. Claro. A professora nem precisou me explicar que menina dessa idade já não fica mais com o peitinho de fora na frente dos outros. Menino, sim. Fiquei olhando os coleguinhas no Campão, suados como eu, mas sem aquele uniforme quente, vermelho e bege, que mais parecia um pijama de mau gosto. 

Isso era 1991. E o episódio nunca me saiu da cabeça. Acho que foi a minha primeira reflexão feminista. E, na sequência, vieram outras. Almoço de domingo, tios e primos à mesa. Depois da sobremesa, mulheres à cozinha. Homens ao sofá. “Por quê?”, pensava. E, no começo, cheguei a desejar ter nascido homem. (!!!)

Dessa criança, não poderia ter saído uma adulta de direita, nem carola, nem a favor dos valores pregados pela “tradicional família mineira”. Até hoje, gosto dos temas que trazem a mulher para o protagonismo de sua vida. E acredito que estamos num caminho sem volta quando o assunto é a crescente igualdade de direitos entre os gêneros.

Nesse contexto machista em que nascemos e crescemos, sempre enxerguei o casamento como a instância da perda: perda de autonomia, de individualidade, perda até de personalidade. No meu inconsciente, decidir me casar era assinar um compromisso que me anularia as escolhas e aniquilaria minhas possibilidades de ser exatamente quem eu sou. Como se para me unir a outra pessoa eu precisasse ser uma MULHERZINHA. E como eu repudiava essa figura!

Mulherzinha, na minha cabeça, era aquela grande mãe sem vontade própria. Não pode investir na carreira, que deve sempre estar num segundo plano. Vive sobrecarregada com sua dupla jornada de trabalho ─ a cozinha e as obrigações domésticas não dizem respeito ao marido, né!? Mulherzinha dorme pouco, pare cinco filhos, não tem tempo para ler, malhar, viajar e sequer escolhe o sabor da pizza. Ela está sempre na sombra da FAMÍLIA, esse valor básico da vida em sociedade que, para mim, era um inimigo da independência.
Foto: Aline Bertoli

Até que a roda viva girou e acordei com uma aliança no dedo e um amado na cama. A feminista se casou: vestiu-se de noiva, assinou papéis no cartório, uniu as louças, as escovas de dentes, só não mudou de nome ─ isso já era demais para a minha cabeça.

Subitamente, meu pavor do fantasma da mulherzinha se avolumou. Declarei antecipadamente: não quero ter filhos! (Ora, como vou seguir planejando carreira e estudos se tiver obrigação com crianças?!) Fazia contas sobre quanta atividade doméstica eu havia feito na semana e comparava com as tarefas desempenhadas pelo marido. Aumentei a frequência da diarista. E coloquei na ponta do lápis todas as contas de casa para uma divisão igualitária, centavo a centavo. Era um grito de independência, um aviso: não vou me afastar de mim!

Meu marido, que não é bobo nem nada, entendeu rapidinho os recados. Aceitou a princípio todos os “não gosto” e “odeio” e “não quero” e “abomino”. E esperou que aquele furacão, o susto, o medo passassem. Parece até que ele já sabia o que ia acontecer.

Não sei quando percebi que é possível, sim, construir uma relação equilibrada, de respeito, sem que se percam as possibilidades individuais. E acredito mesmo que isso depende das nossas escolhas, dos nossos comportamentos, desejos e, principalmente, da nossa libertação. Os sutiãs foram “queimados” (descobri há poucos dias que não chegaram a ser queimados, mas vale a simbologia) há mais de 50 anos. A saída em massa da mulher para o mercado de trabalho começou no século passado. A geração seguinte parece não ter entendido o movimento e se viu obrigada a vestir a fantasia de super-mulher. Trabalha, estuda, cuida, cozinha, lava, passa, limpa, paga. Ufa! Elas fazem tudo e ainda se sentem insuficientes. Elas cuidam de quase tudo. Menos de si.

Foto: http://princesashe-ra.blogspot.com.br
Desde o início, recusei a capa da She-Ra. E também o avental. E tudo isso só funcionou porque o meu marido não tem pinta de Fred Flintstone e nunca sonhou em ser o He-Man. Ele faz compras de mercado, eu também. Ele arruma as dobradiças do armário, eu ajusto as porcas das prateleiras. Ele cozinha, eu lavo roupas. Ambos lavamos a louça e pagamos as contas. E ninguém perde. Ninguém precisa sofrer. Não existe desigualdade. Muito menos submissão.

Só assim entendi que o medo do machismo funcionava em mim como um cabresto. Ao mesmo tempo que me fazia seguir adiante, focada na tentativa de construir uma relação equilibrada, obnubilava a minha visão para aspectos da minha intimidade que eu insistia em ignorar. Como o universo tradicionalmente feminino era um lugar de  ameaça (lave louça e seja para sempre a doméstica), eu me afastava de tudo que historicamente fizesse parte desse papel. Não desejava ter filhos. Acreditava que seria assinar o atestado final de desistência de mim mesma. Maluco, né? Mas juro que pensava em filhos como o fim da vida, a morte da mulher.

Hoje, vendo como nós mulheres ainda lutamos por liberdade, acho necessário fazer algumas ponderações. Lutar é uma palavra que diz respeito a guerra. E por mais que ainda existam muitas injustiças de gênero, a maior guerra está dentro da gente. Acredito na necessidade de darmos prosseguimento às mudanças que começaram com os peitos de fora. Mas acho que não precisamos mais provar nada pra ninguém. Podemos ser efetivamente livres. Livres para não casar, não ter filhos, não cozinhar. E livres também para não nos sentirmos ameaçadas se alguma dessas for a nossa vontade.

O casamento e o desejo recente de ser mãe no futuro não me tornam menos independente ou autônoma. Pelo contrário. Assumir as minhas vontades, mesmo que algumas delas sejam as mesmas da mulherzinha de antigamente, me deixa mais perto de quem eu sou.

Terminou a era dos extremos (pelo menos no Ocidente). Sair da dominação, um dia, exigiu que nos afastássemos das mulheres que existem em nós. Mas, passou. Agora é hora de equilibrar a balança. Podemos ser tudo: profissionais, casadas, solteiras, donas de casa, cinquentonas sem filhos, parideiras de tradição. Desde que façamos as nossas vontades. É tudo uma questão de parar de lutar contra alguma coisa do lado de fora. E escolher o silêncio para ouvir o que vem de dentro.

Foto: Rik Ferraz
Por Patrícia Ferraz