quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Brasileiro convencido


Fotos: Romeu Piccoli
Era pra ter saído da casa dos pais com meia hora de antecedência. A prefeitura fecha às 16h. Funcionário público tem sorte. Eu não. Faltam 14 minutos. 

Viro a chave do carro. A luz amarela lembra que era pra ter abastecido. Não dá pra parar agora. Também não dá pra ligar o ar condicionado, senão o combustível não vai dar. Por que eu pus álcool da última vez? 38 graus lá fora. Dentro do carro, que estava fechado embaixo do sol, uns 45.

Janela aberta. Cabeça fervendo. Trânsito. Antes, era só nos finais de semana e feriados, quando os farofeiros invadiam a cidade. Agora os farofeiros são diferentes. Mas ainda são farofeiros e passam o verão inteiro por aqui. Eu chego perto do semáforo, ele fecha. Quando abre, uma mulher pisa na faixa de pedestre. Não vou avançar, não vou falar um palavrão. Eu sou civilizado, me convenço. 

Por que eu quis pegar onda antes de resolver os compromissos nessa rara folga de meio de semana? Aliás, toda folga é rara para um jornalista. Eu sei porque fui surfar antes. Porque é muito melhor do que resolver questões burocráticas. Qualquer coisa é melhor do que resolver questões burocráticas. Principalmente, no país da burocracia. Burocracia que não funciona. Do país que não funciona. E eu sou filho desse país. Por isso deixei pra última hora, pro último dia possível de resolver a maldita questão burocrática. Eu sou igual a estádio da Copa. Atrasado, enrolado. Só não tenho tanta grana, nem falcatrua. 
Itaquerão
Cheguei na prefeitura!

—O estacionamento tá cheio, patrão.

Eu não vou xingar o porteiro da prefeitura. Ele não tem culpa. Sou civilizado, me convenço.

Duas voltas ao redor do paço. Não tem lugar. Dentro do carro, sozinho, eu posso xingar. Caralho! Não vou parar em vaga para deficiente. Eu sou civilizado, me convenço. Um Celta sai. Com a tal da pressa inimiga da perfeição, espremo meu carro na vaga do celtinha. Bato no para-choque do carro da frente. Bato no para-choque do carro de trás. 

Saio correndo, pingando suor, com dor de cabeça. Na porta da prefeitura lembro que deixei os documentos no carro. 15h55. Corro mais, transpiro mais, a dor de cabeça aumenta. Quando pego a pasta no banco do passageiro percebo que amassei o carro de trás. Prejuízo. Porra! Depois resolvo isso. 

O guarda municipal tá fechando a porta da prefeitura. 15h59. 

—Corre lá, Romeu.

Gente boa esse cara, acho que já joguei bola com ele quando era moleque. 

—Moça, preciso entregar essas guias.

Ela não se sensibiliza com a minha respiração apressada, com o meu suor, com a minha ansiedade.

—Sinto muito, senhor. Nós não vamos poder estar atendendo o senhor. 

—Pô, mas são quatro horas!

—São quatro e um, senhor. Diz a atendente, já se retirando da sala.

Isso funciona no Brasil, o horário de fechamento da repartição pública.

Eu suplico, imploro:

—Moça, por favor, eu moro em São Paulo, por favor, por favor...

Ela já saiu da sala.

FILHA DA PUTA!!!! Eu sufoco o xingamento na garganta. Sou civilizado. Sou atrasado. E me convenço, sou brasileiro e sou calado. 

Por Romeu Piccoli

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Passeio no purgatório

Foto: Reuters
Não sei dizer a idade da mulher. Podia ser 60, 70 anos. A aparência do rosto era de 80, embora o ímpeto e a velocidade das palavras fossem de alguém mais jovem. Ela pedia 2 reais para comer. Os dedos com cascas pretas de centenas de queimaduras nos mesmos pontos, provocadas pelo isqueiro, denunciavam o real objetivo. A velhinha, com cara de vó que faz crochê, queria alimentar o vício. 

Foto: Nilton Fukuda/Estadão
Era o meu reencontro com a cracolândia. A de São Paulo. Há muito tempo não fazia uma reportagem por ali. O ambiente é democrático. A democracia da degradação. Todos são iguais, independentemente de idade ou classe social. Quando digo classe social é a de origem, por que lá  todos estão na mesma sarjeta. Todos são zumbis, todos têm a mesma perturbação, o mesmo auto-abandono, a mesma impotência para qualquer outro fim e a mesma disposição da vozinha pra conseguir o que colocar no cachimbo.


A minha função era descobrir como os 200 dependentes químicos que aderiram ao novo programa da Prefeitura estavam lidando com as regras. Eles moravam nas ruas ou em barracos montados nas calçadas ao redor do fluxo, o lugar onde o crack é vendido e fumado ao ar livre.  Passaram a ter hospedagem em hotéis paga pelo Município, emprego de gari com remuneração de 15 reais por quatro horas trabalhadas, três refeições e cursos profissionalizantes à disposição. Eles não são obrigados a largar a droga, mas não podem usá-la dentro do hotel e nem entrar no quarto depois das  22h.

"Vou pra cracolândia ter hotel e comida de graça", ironizou um comerciante de classe média, com barba feita, gel no cabelo,  sapato social lustroso e camisa de botão por dentro da calça jeans, marcando a protuberante barriguinha preguiçosa. Acredite, ele não gostaria de estar lá. Ninguém gostaria.

A resposta para o comerciante sem vício (aparente) vem, sem querer, de um dos adeptos do programa que entrevistei. Márcio, 42 anos, poucos dentes na boca e muita lucidez na cabeça há dois dias sem a fumaça do crack. "Quando um viciado desesperado pede ajuda, o cara humilha: 'vai trabalhar, vagabundo', mas quando o viciado tá com um arma na mão ninguém chama ele de vagabundo". Com a experiência de quem definha há 8 anos na rua e na pedra, Márcio enxerga no projeto uma chance pra que alguns dependentes deixem de se humilhar ou não apelem ao revólver. "Nós somos invisíveis pra sociedade".  

O programa pode até ser uma maquiagem no centro da cidade, como teme Flávia, uma negra bonita, de 37 anos, que há dois não vê o filho pequeno. "E se depois da Copa eles largarem a gente na rua, de novo?". É uma hipótese. Pode ser também mais um ralo para o dinheiro da corrupção. Talvez.  Mas é, no mínimo, uma iniciativa  diferente, em meio a tantas ações públicas desastrosas, puramente midiáticas ou inócuas.

Márcio já foi motorista de bacana e mecânico. Vestir o uniforme de gari não seria propriamente o sonho de alguém com esse currículo. Mas ele teve orgulho, estava trabalhando novamente, pensando em algo que não fosse como conseguir uma pedra. Sentiu-se útil. E isso é importantíssimo para que o dependente, pelo menos, cogite a recuperação. 

Quando agradeci pela entrevista, Márcio ficou com os olhos cheios de água. Perguntei por que se emocionou. "Porque você conversou comigo, me deu a mão". Ele tinha feito as pazes com a sociedade. Não era mais invisível. 

Por Romeu Piccoli



terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A menina da caixa de papelão

olhos
Foto: Rik Ferraz
Ela vivia no jardim. E quando qualquer monstro aterrorizante aparecia-lhe para tirar o sossego, corria para dentro da caixa. Eram quatro partes de um papelão grosso, que não a isolavam propriamente do ambiente externo, mas lhe promoviam a ilusão de privacidade. Ilusão porque o olhar mais indiscreto estava também ali dentro para observá-la: o seu próprio.

Demétria tinha olhos grandes, expressivos, quase onipresentes. Mirava os acontecimentos ao redor e dentro de si com dramaticidade. Agarrava-se aos seus sofrimentos psíquicos como se fossem causa e consequência de sua existência. 

A caixa proporcionava-lhe algo de seu, de especial, de diferente. Se não tinha o mundo, tinha um pequeno espaço. Se não tinha a si, escondia-se onde só os seus olhos pudessem pousar sobre tantas fraquezas.

Mas não era fácil ficar ali. Havia uma nuança de perversidade. Soava-lhe bonito sofrer como mártir. Qualquer conquista poderia assumir uma aparência maior do que de fato tinha. Essa era a grande sacada.

Para completar o ciclo, comparava-se com qualquer outro ser que lhe parecesse razoável. E sempre encontrava parâmetros para se diminuir. Não era a mais rápida na corrida; tampouco a mais sedutora; nem mesmo a mais inteligente da classe. Era uma menina ordinária, no sentido literal da expressão.

Embora em seu inconsciente estivesse inscrita a informação mais fidedigna a respeito de suas verdades – a de que suas dores eram menores do que lhe pareciam - Demétria preferia que tudo permanecesse assim. Orgulhava-se de ser “A menina da caixa de papelão”.

Ainda quando as partes estavam dobradas e sobrepostas, resumidas a um encarte compacto, havia de carregar seu refúgio nas costas. E aquilo  tinha um peso do qual era tão difícil desfazer-se quanto manter.


Por Patrícia Ferraz

sábado, 11 de janeiro de 2014

A morte do machão

Foto: Romeu Piccoli

Almoço de domingo. O anúncio deixou pai, mãe, avó, tia e irmã incrédulos. Em 36 anos de vida Robson nunca falara em casamento. Mas agora ele estava convicto. "Encontrei a mulher da minha vida". 

Conheceu Keila no restaurante onde comia o prato-feito bem servido perto da fábrica. Ela também trabalhava por ali. Era cabeleireira. 

Robson fez a declaração solene à família logo depois do primeiro encontro. Uma carona no final do expediente e só rolaram uns beijos. Ele respeitou a moça. Já estava apaixonado. E isso era raro. 

Foto: Instagram Emerson Sheik
Machão, Robson não era o tipo de se entregar aos sentimentos, muito menos de falar sobre eles. Também não gostava de música romântica e odiava gays. Cortou relações com Otelo depois que o primo assumiu a homossexualidade. "Sem-vergonha!". Arrancou o pôster da parede com Emerson Sheik comemorando o segundo gol do título da Libertadores assim que viu a foto do atacante dando um selinho num colega. Numa reunião, na Gaviões da Fiel, prometeu quebrar na porrada qualquer um que ousasse fazer parte das Gaivotas Fiéis, a torcida cor-de-rosa do Corinthians. 

Keila quase não falava da vida pessoal. Era meiga, mas com atitude. Tinha nos olhos um pouco de tristeza e a força de quem já sofreu bastante. Era alta, loira, sempre muito maquiada. Só não era perfeita porque torcia pro Palmeiras. Mas ela podia.

Com o namorado novo, Keila fazia linha dura. Foram ao cinema, passearam de mãos dadas no shopping. Depois, só beijinhos no carro, o que deixava Robson ainda mais apaixonado. No sexto encontro, ele foi buscá-la no salão de beleza empunhando um buquê de rosas. Assobios e risadinhas dos colegas da garota. 

Aquela noite foi quente! Keila ficou sem a blusa. Resistiu.  Não tirou a calça jeans colada nas coxas longas e grossas. Lá pelas tantas, abriu o zipper de Robson e, com a boca, o fez ter a melhor sensação que já experimentara na vida. 

Keila sabia que não daria para segurar mais num próximo encontro. Começou a evitar Robson, não atendia os telefonemas. Quando falava com ele inventava uma desculpa para não o encontrar. Almoçava em outro restaurante.

Quase uma semana sem ver Keila. Robson se consumia. Na sexta-feira, saiu da fábrica 15 minutos antes e fez plantão em frente ao trabalho da amada. Ela não tinha como escapar. 

Foram para o apartamento dele. Beberam quase uma garrafa inteira de vodka com energético. Aquilo estava uma loucura. Num golpe só ele arrancou a blusa e o sutiã da garota. Era uma luta na cama. Tirou a saia com fúria. Quando puxou a calcinha para baixo, com as duas mãos, um choque!

Keila era Roberto. A imagem daquele negócio apontado pra ele (maior que o dele) deixou-o sem ação. Primeiro, Robson se levantou de susto, depois se sentou na cama para não cair. Não teve forças pra mais nada. Só falou baixo, arrasado, para Keila/Roberto ir embora.  

Robson ficou naquela cama até a noite seguinte, prostrado. Não saiu de casa por 5 dias. "Eu beijei a boca de um homem, passeei com um travesti". Vomitou várias vezes, teve diarréia. Pediu demissão por telefone. Não se alimentava. Emagreceu 6 quilos em duas semanas. Estava enlouquecendo.

"Vou matar aquele viado". Comprou um 38 com a numeração raspada de um vizinho de infância que virou malandro. Guardou o revólver no guarda-roupa até decidir o que iria fazer. 

No vigésimo dia após a fálica revelação, Robson tomou um banho e foi até a esquina do ponto de ônibus onde Keila/Roberto pegava a condução. Quando o travesti se aproximou, o moribundo abriu a porta do carro: "entra". Ele/ela quase não reconheceu o ex-namorado. Magro, de barba, com olheiras enormes, vestindo moleton com capuz e usando um boné, até a mãe dele o confundiria. 

A viagem ao prédio foi em silêncio. No elevador, Robson não cumprimentou a vizinha. Abriu a porta do apartamento com as mãos trêmulas. O corpo inteiro tremia. Não acendeu as luzes. Keila/Roberto entrou resignado, como gado no matadouro. Continuavam sem dizer uma palavra. 

De repente, Robson jogou a vítima na parede... E se entregou ao prazer. A todos os prazeres. Aos dele, aos de Keila e aos de Roberto.

P.S.: A arma continua no mesmo lugar. Robson só mexe nela de vez em quando para mostrar aos amigos o que ele faria se alguém resolvesse criar mais alguma torcida gay do Timão.

Por Romeu Piccoli

Foto: Romeu Piccoli

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Não me leve
















Diana sentou-se no banco da frente.

—Para a Avenida Pacaembu, por favor.
—Sorte da senhora que o jogo é mais tarde. Aquilo lá vira um inferno em dia de clássico.
—Meu marido sempre dizia isso.
—Viúva?
—Não. —Ela achou graça da pergunta— Recém-separada.

Silêncio.


—Desculpa, dona. Não quis intrometer.
—Tudo bem. Quanto mais a gente fala sobre o assunto, mais leve parece ficar.
—Posso perguntar outra coisa então?
—Sim.
—Foi traição?
—Não, exatamente. O encanto acabou.
—Ah, mas aposto que ele se apaixonou por outra!
—Fui eu que me apaixonei.
—Puxa! Coitado.

Outro silêncio.


—E, deu certo?
—Não. O outro também é casado.
—É, deve ser muito bem casado, então, para dispensar um mulherão desses.
—Obrigada.

O barulho da rádio trânsito tomou conta do carro. Enquanto o taxista atravessava a Av. Paulista a vinte quilômetros por hora, Diana mergulhou fundo nas dores recentes. Ela desconfiava. Leonel nunca teria coragem de dispensá-la. E nem de ser dela.

—Posso cortar caminho aqui pela Alameda Campinas?
—Pode... O senhor é casado?
—Há vinte e quatro anos. Em 2015 vamos fazer um festão na vila pra comemorar bodas de prata.
—Parabéns. O meu durou só sete anos.

O silêncio agora foi curto, interrompido pela curiosidade dela.

—Posso perguntar uma coisa?
—Claro!
—O senhor ama sua mulher?
—Ah, eu gosto muito dela.
—Não, tô falando de amor, amor de verdade. O senhor ainda a ama?
—Eu nem devia falar essas coisas, mas acho que para a senhora eu posso contar. Amor, amor mesmo, eu sinto por outra pessoa. A Jussara é minha companheira, a mãe das crianças. Mas é na Nívea que eu penso todos os dias quando acordo.
—E o senhor se encontra com a Nívea?
—De vez em quando. Agora ela deu uma sumida. Já tem uns três meses que não vejo ela. Mas a gente se encontrou por muito tempo.
—Muito tempo?
—Muitos anos...
—Quantos?
—Conheci ela em 97. E, desde a primeira vez, a gente nunca mais se afastou.

Diana não conseguia entender. As histórias se repetem. Um amor clandestino e um casamento de fachada. Anos a fio… Por quê? Para quê?

—Dona, a São Carlos do Pinhal também tá parada. A senhora prefere voltar para Paulista?
—Não, pode fazer o caminho que o senhor achar melhor. Agora, me diga: nunca te passou pela cabeça largar tudo, se separar e viver essa história com a outra? Por que continuar casado, sem amor?
—São duas coisas diferentes, sabe? A Jussara é minha mãezona. A senhora tem que ver como ela cuida de mim. Chego em casa toda noite, já tem a comidinha pronta, a roupa lavada, a cama cheirosa. Quando eu tô muito cansado, ela ainda me tira os sapatos e faz massagem!
—Sim, mas e daí?
—Foi com a Jussara que eu construí minha vida. As crianças já estão grandes, bem-criadas, a senhora tem que ver. Tá tudo fazendo faculdade! Agora, a Nívea, não. A Nívea é minha alegria, minha parceira. A gente vai junto no jogo do Corinthians, ela torce comigo como se fosse homem! A gente viaja, vai pra cachoeira, passa a noite bebendo... a Nívea é minha diversão.
Foto: Romeu Piccoli
—E ela sabe que o senhor é casado?
—Sabe.
—Não se importa?
—Eu sempre disse para ela que iria separar. Mas nunca tive coragem. Hoje eu sei que isso nunca vai acontecer. Não largo a Jussara por nada nesse mundo. A Nívea se injuriou. Mas acho que daqui a pouco ela volta. A gente se ama.
Diana arriscou mais uma pergunta. —O senhor é feliz?

...
Foi o último silêncio. Ela nem precisava ouvir a resposta. Agora, entendia o taxista e, também, Leonel.

A corrida levou mais quarenta minutos. O rádio falava em 196 km de lentidão na cidade.  Diana ouvia as motos que não paravam de buzinar. Mas estava longe dali. Quando chegou ao consultório, tinha duas pacientes para atender. Lavou as mãos, enxugou as lágrimas e deletou da agenda o telefone de Leonel.

Por Patrícia Ferraz



domingo, 5 de janeiro de 2014

Prisão domiciliar



Foto: Alexandre Nacano
Era um martírio ver os amigos passando com a prancha embaixo do braço. Flávio morava a três quadras da praia. Preferia não olhar mais pro mar - justamente o mar, que sempre trouxe tanta alegria pra ele. Sentia-se injustiçado pelas próprias escolhas. As ondas quebrando sozinhas ou, principalmente, com alguém nelas o lembravam disso. E ele preferia não remoer aquela angústia.

Foi a aproximação com Rita que o afastou da prancha. Paixão avassaladora. Garota bonita, certinha, "a" inteligente da escola. Nunca olhou pra ele no colégio. Como é que ela foi gostar de mim? Por causa dela, Flávio começou a usar camisa pólo, daquelas com o logo do jacarezinho, que antes ele odiava. Bermudas coloridas, ainda existiam algumas no guarda-roupa. Tênis de skatista, nem pensar. Sapatênis é mais elegante, impunha Rita. 

Os amigos eram os amigos dela. Os brothers ele só encontrava de vez em quando, passando pela rua. Conversava 5 minutos e seguia. Dava uma saudade. No começo do namoro Flávio ainda tentou enturmá-la. Não deu. "O Zé é maconheiro demais, o Cabelo só sabe falar de surf, o Marcelo é muito galinha e a mulher do Beto fica dando em cima de você". Nenhum servia. 

Flávio não era bonito. Mas o sorriso largo, que lhe valeu o apelido de Bocão, e o brilho que tinha nos olhos lhe conferiam certo charme. Da galera da praia ele já havia azarado as mais bonitas. Antes do primeiro beijo na Rita, claro. 

Aos poucos, o rosto de Flávio foi ficando apagado. As rugas se acentuaram. A barriga cresceu assustadoramente. A diversão era beber cerveja (muita), fazer churrasco no sábado e jogar videogame. Ele não era mais o Bocão. Todo mundo percebia. 

Chorou quando descobriu que a mulher tinha um caso. O ódio aumentou quando soube que era com o chefe dela. Engomadinho e pedante.  Aquele cara que nas festas da firma sempre tinha um ar de superioridade e lhe dava tapinhas nas costas.

Ficou duro na partilha da separação. Depressivo, perdeu o emprego.

Resolveu encarar a praia, só ficou na areia. Encontrou com Percy, o amigo que shapeava as pranchas pra ele nos bons tempos. "Porra, Boca, gostava de ver aquela cavada com a mão na água que você dava. Passa lá na oficina". 

Pranchinha normal não ia dar. Flávio estava com 23 quilos e 11 anos a mais do que da última vez em que surfara. Percy liberou para o ex-atleta da equipe uma fish de segunda mão, larga e com bordas muito grossas. Parecia aqueles "baús" dos anos 80, mas com um fundo moderno e quatro quilhas, dava pra surfar com três também."Vai que é sua, Bocão!". Ele não se empolgou, nada o empolgava ou o fazia sorrir de verdade já bem antes da separação.

A estreia foi numa segunda-feira ensolarada de março. Mar perfeito, um metrinho, liso, fácil de atravessar a arrebentação. Flávio foi com calma. Sentou na prancha, que quase escapou por entre as pernas. Esperou recuperar a respiração. Caiu nos dois primeiros drops. Completou o terceiro, mas foi reto, não alcançou a parede.

Ele estava na água há pouco mais de uma hora. Os braços pesavam uma tonelada. Resolveu aguardar a saideira. Uma esquerda bonita, em pé. Remou, entrou certinho. Acelerou, deu um cutback redondo com a mão na água, se desequilibrou um pouco quando encostou na espuma. Acertou o pé novamente. Ganhou um pouco de velocidade. Mandou mais duas rasgadas e finalizou com uma batida na junção, sentiu até a rabeta dar uma derrapadinha de leve antes dele ficar completamente ereto em cima da prancha e perceber que havia concluído a onda com dignidade. 

O surf não era mais o mesmo, mas o sorriso era o daquele menino de 13 anos.

Por Romeu Piccoli

2014 - O ano do improvável

No silêncio da mata, no meio da montanha, um pensamento. O ano novo vai ser patrono de uma reviravolta. Aliás, uma revolução. Não dessas que se fazem em junho, com cartazes, apitos, passeatas. Tampouco uma revolução armada. O que vai acontecer é uma organização silenciosa da desordem do mundo.

Tudo vai começar com Marco Feliciano. Ele vai sair. Sim. Vai sair do armário e, na sequência, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. E avisar aos primos com quem brincava de médico que podem romper a Lei do Silêncio. Eles vão contar, no Arquivo Confidencial, como eram as peripécias infantis do ilustre parlamentar, quando ainda não precisava interpretar o papel de radical homofóbico. O pastor vai deixar a Igreja e encabeçar a luta pelos direitos LGBT.

Não acredita?

Pois, sua surpresa será ainda maior quando um jato da FAB despencar em plena Praia de Boa Viagem.  A bordo? Renan Calheiros, devidamente capilarizado. A aeronave não só cairá, subitamente, deixando vivos o piloto e o co-piloto, que fugirão às pressas, como explodirá em seguida. E o primeiro combustível para as chamas, ironicamente, serão os dez mil fios recém implantados do senador. 

No sofá de casa, diante de Bonner e de sua colega de bancada, o brasileiro médio vai assistir a essas invulgaridades com estranheza e ansiedade. Tentando explicar às crianças que é tudo brincadeirinha, enredo de filme. 

O presidente do Supremo, Joaquim Barbosa, vai emburrecer. Subitamente, o repertório vocabular do meritíssimo evaporar-se-á. Ele vai se esquecer das chicanas e dos embargos infringentes. Não conseguirá dar ordens aos seus assessores. E será aposentado compulsoriamente quando não conseguir conter a baba na última sessão da corte.

Os mensaleiros não poderão comemorar. Por sua parte, também estarão babando. Só que em suas respectivas celas. Pizzolato, na Fontana di Trevi. Vai virar piada dos nigerianos que ficam à espreita.

Em outubro, ninguém vai entender de onde vieram as milhares de assinaturas registradas em cartório para a criação do Partido Solidariedade. Elas vão desaparecer nas urnas. E nem a "força" do além vai ser suficiente para eleger Paulinho. Convocado nas mesas brancas, Lech Walesa vai revelar que jamais se solidarizou com a fraude. Não com essa, pelo menos.

Vladimir Putin será flagrado dançando pelado num show particular da Banda Pussy Riots. E as fotos dele vão percorrer tantos quilômetros virtuais que até a Carla Perez vai entender a gravidade da coisa.

Carlos Drummond de Andrade vai levantar a bunda daquele banco público da orla carioca para dizer que não é o autor de centenas de frases mal elaboradas que lhe atribuem, arbitrariamente. Marx e Engels também vão ressuscitar para pedir a condenação imediata de Fidel Castro. E ele, finalmente, vai morrer de susto quando souber.

Mas a surpresa maior virá na Copa do Mundo. Joseph Blatter, Jérôme Valcke, Ricardo Teixeira e Peter Siemsen, presidente do Fluminense, estarão juntos na área VIP da Arena Corinthians, quando Edward Snowden aparecerá no telão, como um  Patrick-Swayze-fantasma. Ele dirá que todas as saídas estão trancadas e que o fim será irremediável apenas para este quarteto fantástico do futebol. Uma nuvem imantada de ácido sulfúrico se formará subitamente sobre a construção escandalosa. E uma chuva seletiva cairá sobre as quatro cabeças. Héverton, meia da portuguesa, estará em casa, assistindo à transmissão. Repórteres e apresentadores ficarão mudos. Mas o jogador vai entender tudo. E vai dar um meio sorriso, desses de canto de boca.

A confluência dos astros, apesar de toda desgraça, vai permitir a consagração de um campeão. E, claro, não será o Brasil de Neymar, nem a Argentina de Messi ou a Espanha de Iniesta e Casillas. A taça do mundo será do México. E a imagem de Frida Kahlo num auto-retrato debochado vai aparecer em cada uma das nuvens do mundo. Lembrando a todos a inevitabilidade da trajetória orbital.


A essa altura da conjuração, no silêncio da mata, no meio da montanha, pousa-me no braço um mosquito-careca-sugador-de-sangue-parecido-com-o-Renan. E me faz lembrar que dois mil e quatorze já começou. Mas o Marco Feliciano ainda é presidente da Comissão de Direitos Humanos.

Por Patrícia Ferraz

sábado, 4 de janeiro de 2014

Ih, Deu Branco

Era pra ser Quatro Mãos. Fiquei vaidoso com o insight para o nome do blog. Até a esposa pesquisar e descobrir que a minha criatividade era tão exclusiva quanto um palito de fósforo ao lado dos outros dentro da caixinha. O tio Google mostrou que todo mundo que tem uma sociedade já pensou no título que eu havia idealizado. De casa de massagem a empresa de pintura de parede, de escritório de advocacia a escolinha pra treinar goleiros.

Precisávamos de um novo nome. Empacamos. Deu branco!

"Isso, Deu Branco", disse ela. 
"Claro que deu branco, amor, sempre dá branco quando a gente tem que criar alguma coisa."
"Não, Deu Branco". 
"Pô, tá louca, Patrícia, acabei de falar."
 "Então, Deu Branco pode ser o nome do blog", sussurrou com um tom entre o irritado e o arrependido, temendo a reprovação.
"Deu Branco, boa!"
Ela sorriu. 

Não tenho a mínima ideia de quantas vezes já ouvi  e já falei essa frase. Meus amigos enfumaçados da adolescência sempre gargalhavam com a lentidão dos neurônios. Os jornalistas se irritam com o hiato criativo na frente do computador, principalmente, na primeira e na última frase do texto. Vivencio essa situação desde os tempos da Olivetti

Tem o branco da palavra simples e corriqueira que cabe perfeitamente naquela frase, mas que insiste em fugir da sua memória na hora da conversa séria ou da palestra. Pior é que nessas horas nem a palavra quase certa aparece (adeus credibilidade). O branco constrangedor do nome daquele camarada que conviveu com você por anos e agora escapa por entre as teias do seu maldito cérebro sacaneador.  


Registraremos aqui nossas histórias, ideias, opiniões e demais besteiras. Uma forma de tentar impedi-las de passar em branco, mesmo que algumas, talvez, devessem.

Por Romeu Piccoli