sábado, 4 de outubro de 2014

Brasil FC

Charge: Jornal de Uberaba
Não é um campeonato de futebol. Mas boa parte do eleitorado age como torcida. Não importa se o time joga mal, se o juiz roubou, se o passado condena o clube. O que vale é vencer. A pessoa escolhe um lado para torcer e ignora todos os seus defeitos. Define um rival para combater e o ataca com toda fúria e preconceito. Uma rápida olhada nas redes sociais confirma a tese das eleições-campeonato. 

Só pra citar os três principais candidatos ao título de Presidente: 

1- Dilma é criticada pelos torcedores tucanos por ter sido guerrilheira. Mas, convenhamos, se ela tivesse conservado os ideais da época em que acreditava nos princípios românticos da esquerda, não seria conivente com a corrupção orquestrada pelo PT atualmente. Mais dos reclamões: os projetos sociais implantados pelo partido, inegavelmente importantes para o País, são tachados de assistencialistas por uma elitizinha (que, em muitos casos, nem elite é). Já a torcida dilmista fecha os olhos. Não enxerga as quadrilhas que existem no Partido dos Trabalhadores e não são combatidas internamente. É um povo que ainda acha descolado usar camiseta com imagem do Che Guevara e defende a ditadura, desde que seja a cubana. O novo eleitorado do antigo "rouba, mas faz".

2- Quanto a Marina, tucanos e petistas se juntam para alardear a religiosidade da candidata como um desvio de caráter. Vejo gente comentando como crime o fato dela abrir a Bíblia antes de uma decisão importante. Ora, qual o problema de alguém rezar o Pai Nosso, pedir proteção aos orixás ou meditar em frente a uma estátua de Buda? Nenhum, desde que a pessoa não seja fanática. E Marina não tem o menor traço de fanatismo. O aparente despreparo da ecologista, o improviso do programa de governo, as mudanças eleitoreiras de opinião e o partido de aluguel, que são as fragilidades reais da candidatura, ficam em segundo plano entre os críticos. Os marineiros, por sua vez, se recusam a reconhecer essas falhas e as empurram para debaixo da terra. 

3- Aécio tem no suposto consumo de cocaína o principal combustível para os ataques da torcida adversária. Só não conheço quem tenha provas de uma internação ou mesmo de uso esporádico do entorpecente. Esses mesmos críticos fingem que não foi o PSDB que controlou a inflação surreal do Brasil. Por outro lado, os defensores do mineiro minimizam os 14 milhões de reais liberados pelo então governador Aécio para o aeroporto na fazenda do próprio tio, o mensalão do PSDB em Minas Gerais e a roubalheira que foi a privataria nos Governos FHC. Para os engomadinhos tucanos só a corrupção petista é vergonhosa. 

Com a disputa acirrada entre os líderes, o show sobrou para os pequenos. A radical Luciana Genro; o bicho-grilo Eduardo Jorge; a marionete do Aécio, Pastor Everaldo e o imbecil do Levy Fidelix tocaram em assuntos polêmicos de que o G3 se esquivou para não perder votos.

Domingo é o dia. Seria bom se todos lembrassem que política não é futebol. E que urna não é latrina, embora muita gente não se importe em fazer do voto  produto do aparelho excretor. Que vença o melhor. Ou o menos pior.

Por Romeu Piccoli

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Quadriamor*

Nem foi preciso apertar a mão dele, logo quando cheguei à casa, para saber que suava. Suava de nervoso. Wesley tinha acabado de descobrir que seria pai de quadrigêmeos. Quatro bebês de uma só vez. Não fosse o choro da noiva, ele nem teria acreditado, teria dado risada com o telefonema dela. "Amor, são quatro bebês. O que vamos fazer agora?"

Ele, funcionário de um mercadinho no extremo norte de São Paulo. Ela, operadora de telemarketing. Juntos não ganham mais do que R$3.500. "Se fosse um bebê, era super natural. A gente ia alugar uma casa. Mas, mas com 4, não tem como", explica ele, com os olhos permanentemente em movimento. O jovem de 27 anos ainda não tem jeitão de pai. Parece agitado. Às vezes, meio perdido. Talvez, assustado com toda a responsabilidade que o espera.

Carol, a noiva, também tem cara de menina. Os dois planejavam se casar, juntar dinheiro, ter o próprio espaço. Filhos eram um projeto de futuro. Um futuro que chegou muito antes do esperado, apesar dos 11 anos de relacionamento. O namoro da adolescência teve algumas rupturas, mas venceu o tempo. E, no primeiro encontro com o casal, qualquer pessoa já consegue entender por que. Carol e Wesley se gostam. Se tocam. Trocam olhares cúmplices. Em uma ou duas horas de conversa, constatei que os dois estão realmente juntos. Fiquei aliviada pelas crianças. É bom nascer de um amor que sobrevive.


Primeiro dia de gravação com o "Casal Quádruplo"
O sexo dos bebês ainda é uma incógnita. O que se sabe é que serão os quatro idênticos. Para Carol, melhor se forem meninas. A jovem de 26 anos ganhou uma rotina de enjoos e perdeu o sono. Na cama, fraldas, macacões, calças de bebê ocupam o espaço que os ursinhos de pelúcia perderam. A decoração cor de rosa do quarto de solteira estaria apropriada para receber os filhos, não fosse o tamanho da família. Carol divide o quarto com a irmã, Cátia, de 24 anos. Mas é por pouco tempo. Quando os quadrigêmeos nascerem, os pais de Carol vão ceder a suíte da casa para a nova família. Dona Carlita vai dormir no quarto de Cátia. E, o marido dela, com o filho caçula, Carlos Henrique, de doze anos. É o primeiro de muitos arranjos que a família vai ter de fazer para dar conta do recado.

A vinda dos quadrigêmeos deixa uma certa apreensão no ar. Uma mistura de preocupação, medo e ansiedade. São muitos meses pela frente. Exames, descobertas, desafios. A única certeza do casal, por enquanto, é a vontade de estar junto. "O Wesley já era carinhoso, agora tá mais ainda. Se ele me ligava cinco vezes, agora liga dez. Tudo dobrou." Carol entende bem de sentimentos, mas errou na conta. O amor não dobrou, Carol! Quadruplicou!

*Bastidores desta reportagem exibida pelo programa Domingo Espetacular, da Rede Record.


Por Patrícia Ferraz

terça-feira, 22 de julho de 2014

Feminista, sim, e mulher

Arquivo
Cabelão e franjinha, cinco anos de idade, uniforme de malha e tergal, verão de 35°. Era hora da diversão. A escola levava os alunos para uma área conhecida como Campão: um imenso gramado com as mesmas medidas de um campo de futebol profissional. Ali, suada depois da brincadeira, meus desejos eram dois: beber uma garrafa d’água geladíssima e tirar a camisa. Só consegui satisfazer o primeiro. Claro. A professora nem precisou me explicar que menina dessa idade já não fica mais com o peitinho de fora na frente dos outros. Menino, sim. Fiquei olhando os coleguinhas no Campão, suados como eu, mas sem aquele uniforme quente, vermelho e bege, que mais parecia um pijama de mau gosto. 

Isso era 1991. E o episódio nunca me saiu da cabeça. Acho que foi a minha primeira reflexão feminista. E, na sequência, vieram outras. Almoço de domingo, tios e primos à mesa. Depois da sobremesa, mulheres à cozinha. Homens ao sofá. “Por quê?”, pensava. E, no começo, cheguei a desejar ter nascido homem. (!!!)

Dessa criança, não poderia ter saído uma adulta de direita, nem carola, nem a favor dos valores pregados pela “tradicional família mineira”. Até hoje, gosto dos temas que trazem a mulher para o protagonismo de sua vida. E acredito que estamos num caminho sem volta quando o assunto é a crescente igualdade de direitos entre os gêneros.

Nesse contexto machista em que nascemos e crescemos, sempre enxerguei o casamento como a instância da perda: perda de autonomia, de individualidade, perda até de personalidade. No meu inconsciente, decidir me casar era assinar um compromisso que me anularia as escolhas e aniquilaria minhas possibilidades de ser exatamente quem eu sou. Como se para me unir a outra pessoa eu precisasse ser uma MULHERZINHA. E como eu repudiava essa figura!

Mulherzinha, na minha cabeça, era aquela grande mãe sem vontade própria. Não pode investir na carreira, que deve sempre estar num segundo plano. Vive sobrecarregada com sua dupla jornada de trabalho ─ a cozinha e as obrigações domésticas não dizem respeito ao marido, né!? Mulherzinha dorme pouco, pare cinco filhos, não tem tempo para ler, malhar, viajar e sequer escolhe o sabor da pizza. Ela está sempre na sombra da FAMÍLIA, esse valor básico da vida em sociedade que, para mim, era um inimigo da independência.
Foto: Aline Bertoli

Até que a roda viva girou e acordei com uma aliança no dedo e um amado na cama. A feminista se casou: vestiu-se de noiva, assinou papéis no cartório, uniu as louças, as escovas de dentes, só não mudou de nome ─ isso já era demais para a minha cabeça.

Subitamente, meu pavor do fantasma da mulherzinha se avolumou. Declarei antecipadamente: não quero ter filhos! (Ora, como vou seguir planejando carreira e estudos se tiver obrigação com crianças?!) Fazia contas sobre quanta atividade doméstica eu havia feito na semana e comparava com as tarefas desempenhadas pelo marido. Aumentei a frequência da diarista. E coloquei na ponta do lápis todas as contas de casa para uma divisão igualitária, centavo a centavo. Era um grito de independência, um aviso: não vou me afastar de mim!

Meu marido, que não é bobo nem nada, entendeu rapidinho os recados. Aceitou a princípio todos os “não gosto” e “odeio” e “não quero” e “abomino”. E esperou que aquele furacão, o susto, o medo passassem. Parece até que ele já sabia o que ia acontecer.

Não sei quando percebi que é possível, sim, construir uma relação equilibrada, de respeito, sem que se percam as possibilidades individuais. E acredito mesmo que isso depende das nossas escolhas, dos nossos comportamentos, desejos e, principalmente, da nossa libertação. Os sutiãs foram “queimados” (descobri há poucos dias que não chegaram a ser queimados, mas vale a simbologia) há mais de 50 anos. A saída em massa da mulher para o mercado de trabalho começou no século passado. A geração seguinte parece não ter entendido o movimento e se viu obrigada a vestir a fantasia de super-mulher. Trabalha, estuda, cuida, cozinha, lava, passa, limpa, paga. Ufa! Elas fazem tudo e ainda se sentem insuficientes. Elas cuidam de quase tudo. Menos de si.

Foto: http://princesashe-ra.blogspot.com.br
Desde o início, recusei a capa da She-Ra. E também o avental. E tudo isso só funcionou porque o meu marido não tem pinta de Fred Flintstone e nunca sonhou em ser o He-Man. Ele faz compras de mercado, eu também. Ele arruma as dobradiças do armário, eu ajusto as porcas das prateleiras. Ele cozinha, eu lavo roupas. Ambos lavamos a louça e pagamos as contas. E ninguém perde. Ninguém precisa sofrer. Não existe desigualdade. Muito menos submissão.

Só assim entendi que o medo do machismo funcionava em mim como um cabresto. Ao mesmo tempo que me fazia seguir adiante, focada na tentativa de construir uma relação equilibrada, obnubilava a minha visão para aspectos da minha intimidade que eu insistia em ignorar. Como o universo tradicionalmente feminino era um lugar de  ameaça (lave louça e seja para sempre a doméstica), eu me afastava de tudo que historicamente fizesse parte desse papel. Não desejava ter filhos. Acreditava que seria assinar o atestado final de desistência de mim mesma. Maluco, né? Mas juro que pensava em filhos como o fim da vida, a morte da mulher.

Hoje, vendo como nós mulheres ainda lutamos por liberdade, acho necessário fazer algumas ponderações. Lutar é uma palavra que diz respeito a guerra. E por mais que ainda existam muitas injustiças de gênero, a maior guerra está dentro da gente. Acredito na necessidade de darmos prosseguimento às mudanças que começaram com os peitos de fora. Mas acho que não precisamos mais provar nada pra ninguém. Podemos ser efetivamente livres. Livres para não casar, não ter filhos, não cozinhar. E livres também para não nos sentirmos ameaçadas se alguma dessas for a nossa vontade.

O casamento e o desejo recente de ser mãe no futuro não me tornam menos independente ou autônoma. Pelo contrário. Assumir as minhas vontades, mesmo que algumas delas sejam as mesmas da mulherzinha de antigamente, me deixa mais perto de quem eu sou.

Terminou a era dos extremos (pelo menos no Ocidente). Sair da dominação, um dia, exigiu que nos afastássemos das mulheres que existem em nós. Mas, passou. Agora é hora de equilibrar a balança. Podemos ser tudo: profissionais, casadas, solteiras, donas de casa, cinquentonas sem filhos, parideiras de tradição. Desde que façamos as nossas vontades. É tudo uma questão de parar de lutar contra alguma coisa do lado de fora. E escolher o silêncio para ouvir o que vem de dentro.

Foto: Rik Ferraz
Por Patrícia Ferraz


sábado, 19 de julho de 2014

Ele me pediu um beijo*

Ele disse que a fé é como você estar pronto, em cima da montanha, para saltar de pára-quedas e se lançar no abismo. Ele disse que “Deus dá ao amado enquanto dorme”, portanto não tem nada de “Deus ajuda a quem cedo madruga”. Disse que as crianças precisam de liberdade na aprendizagem. E, que se um reitor, um professor universitário ou de cursinho prestasse vestibular, não seria aprovado - assim como ele próprio não seria.

Ele me fez pensar na minha fé. Na minha busca por Deus. Ele me incitou a refletir sobre o valor do trabalho e a importância limitada que ele deve ter na vida. Mostrou com o próprio exemplo a grandiosidade do papel da família.

Acredito fielmente que ele merecia um texto mais poético, mais elaborado, mais criativo. O problema é que preciso dizer com todas as letras. Preciso explicar bem explicadinho, que estive hoje com o mestre Rubem Alves e, acreditem! Ele me pediu um beijo***.

Por Patrícia Ferraz**

*Este texto foi publicado no meu antigo blog, há cinco anos, dias depois de uma entrevista que fiz com Rubem Alves pela EPTV, em Campinas. Já admirava textos e frases deles. Fiquei ainda mais encantada com o senhorzinho careca e cabeça branca, que conseguia elogiar e ser gentil sem a menor sombra de machismo ou invasão de privacidade. 

**Nunca fui adepta de transformar mortos em heróis. Por tê-lo conhecido, mesmo que brevemente, posso dizer com segurança que esse homem era uma alma especial. Não só pela genialidade com palavras e ideias, mas por uma humanidade e uma doçura encantadoras. Na data de sua morte, celebremos a obra e os ensinamentos de Rubem Alves. Ele vai saber que conseguiu dar sentido à própria existência. 

*** Beijo no rosto, óbvio.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Na casa do carrasco

Reprodução de painel/Munique 
Da janela do taxi, a visão em primeiro plano das pistolas automáticas nas cinturas dos dois alemães sisudos não era a melhor recepção que se poderia ter. Hitler, Holocausto, muro de Berlim, neonazistas. Todos esses clichês passavam pela minha cabeça.

Havíamos acabado de pousar e seguíamos para o hotel em Munique. O taxista vietnamita disse que a BMW azul que fechou nosso carro nos seguia desde o aeroporto. "Polizei". Não devíamos nada. Mas, convenhamos, tomar uma geral num país em que você acaba de chegar e não sabe sequer uma palavra do idioma preocupa. 


Passport, please.

Entregamos os documentos sem sair do carro.

Silêncio.

Brasileiros! 

Só faltaram pular.

O que vocês estão fazendo aqui?, disseram em inglês, graças a Deus. Imediatamente, a cara de mau deu lugar a um sorriso amistoso e  começaram a falar de futebol. A Alemanha ainda não havia eliminado o Brasil. Faltavam algumas horas para a seleção deles estrear na Copa. Os tiras deram boas-vindas e nos liberaram sem abrir nenhuma mala ou fazer qualquer pergunta que não fosse relativa a Felipão, Neymar e Dante (descobri naquele momento que ele joga no Bayern). 

A identidade do Brasil no exterior é sim marcada pelo futebol. Com exceção a um casal francês, anos atrás, que me perguntou sobre Oscar Niemeyer, sempre quando algum gringo recém conhecido enaltece o Brasil o tema é a bola. Pelo menos antes dos 7 a 1 era assim.  

Como os policiais alemães, todos os estrangeiros que conhecemos na viagem não acreditavam que estávamos longe do Brasil justamente quando o Brasil sediava o mundial. Eu explicava que já gostei muito desse esporte, mas que andava desiludido. Falava também da relação entre a nossa política e o futebol, da histórica alienação do povo, da megalomania desta Copa, dos gastos excessivos com estádios e toda aquela ladainha que cansamos de repetir. Mas foi só a bola começar a rolar pra eu me mobilizar até a TV mais próxima e, claro, torcer pela nossa seleção. 

Foto: Romeu Piccoli
Campo de Concentração/Dachau
Acompanhar uma copa longe do Brasil é uma experiência bem diferente. Na Alemanha estávamos em casa no quesito paixão ao futebol. Nossos algozes são tão fanáticos quanto nós. Bandeiras nos carros, nas janelas, nos bares e muita gente uniformizada e com a cara pintada em dia de jogo. Eles só não me pareceram tão alienados. Devido ao fuso horário na Europa, nesta Copa, os jogos aconteciam à noite. Se fossem de dia, as empresas não parariam de funcionar, nem os trabalhadores seriam dispensados, mas todo mundo daria um jeito de acompanhar as partidas da seleção germânica, explicaram alemães com quem conversamos.  

Incrível como um país que ficou marcado pelo massacre aos judeus simplesmente porque eram judeus— e que na Guerra Fria jogou no lixo os direitos individuais da população que vivia contida por um muro em sua metade oriental, hoje leve tão a sério a palavra respeito. Museus se proliferam pelas grandes cidades alemãs. Principalmente, sobre temas que eles não têm do que se orgulhar. Campos de concentração são mantidos para visitação. É como se fosse um alerta. Nós erramos e não podemos errar de novo, embora muitos ainda não tenham se livrado dos antigos preconceitos.

Foto: Romeu Piccoli
Campo de Concentração de Dachau

A campanha do time alemão na Copa é um retrato do que o país busca ser atualmente. Objetivo, eficiente, alegre (sim, eles são muito alegres) e respeitoso. Imagine se o Brasil estivesse ganhando de 7 de qualquer seleção. Neymar e companhia abusariam das firulas, dos dribles desnecessários, embalariam no coro de olé. Os alemães, pelo contrário, nos deram uma goleada de respeito. Não me parece que tudo isso seja apenas uma jogada de marketing para melhorar a imagem da pátria. Se for, é feita com maestria. De toda forma, a Alemanha mostrou que temos muito o que aprender com o atual país do futebol. E não só sobre futebol.

Foto: Romeu Piccoli
Grafites no trecho preservado do Muro de Berlim

Por Romeu Piccoli
  

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Vai ter Copa?

pintura de Sandra Elen Anacleto
Um silêncio constrangedor pairava no Brasil. Só um pequeno grupo fazia barulho, no espaço de menos de um quinto do Maracanã. Um grão azul de felicidade numa imensidão verde-amarela de espanto que, em efeito dominó,  extrapolava os muros do estádio, as divisas do Rio de Janeiro, espalhava-se até a Amazônia e os pampas.

A torcida italiana comemorava o 1 a 0 da azzurra, aos 20 minutos do primeiro tempo. No início da segunda etapa, o centroavante brasileiro acerta no ângulo um chutaço de fora da área. Nunca um grito de gol ecoou tão alto e com tantas vozes ao mesmo tempo. A alegria dura 5 minutos. 2 a 1 pros italianos. A equipe nacional se abate. Só o artilheiro de camisa amarela não desiste. Aos 40 minutos, ele pega a bola no meio de campo, dribla quatro marcadores e o goleiro para fazer o gol mais bonito da competição. Diriam depois, que fora o mais belo da história das copas. O Brasil acorda! Pressiona! Já nos acréscimos, depois de um dramático bate e rebate na área, a bola sobra para o mesmo camisa 9. Mais um chute forte e certeiro. Brasil campeão! 3 a 2.

Era assim, na infância, que eu sonhava com uma final de Copa do Mundo no Brasil. E, claro, o nome do centroavante autor dos três gols era Romeu Piccoli. Disputei essa partida muitas vezes na minha cabeça, sempre de forma cinematográfica, apoteótica como deveriam ser todas as partidas de futebol. Uma vingança imaginária aos reais 3 a 2 da Itália, em 1982. Aquele jogo doeu. Como a seleção que só tinha Paolo Rossi mandou de volta pra casa o mágico time de Telê Santana, com Sócrates, Zico, Falcão e companhia?

Eu era o único da família que realmente gostava de futebol. A não ser em Copa, quando pai, mãe e irmãos viravam torcedores cheios de opiniões. Diziam que eu era o boleiro da casa, porque, em 1970, aos 7 meses de gravidez, dona Jandira  (comigo na barriga) pulou o muro da casa da minha avó, num movimento só, para comemorar o tri. 

Por muito tempo o futebol fez parte da minha vida. Aos poucos, as chuteiras foram dividindo ou perdendo espaço para as pranchas,  a máquina de escrever, o computador e o microfone. Mas a bola sempre estava presente. Pelo menos uma vez por semana ou a cada 15 dias tinha uma pelada na praia ou em alguma quadrinha. E vira e mexe eu assistia aos jogos do Corinthians, do Santos, do Brasil ou mesmo algum clássico pelo qual meu coração não batesse mais forte, mas que agradasse aos olhos. 

Pendurei definitivamente as chuteiras quando, já trabalhando em TV, comecei a cobrir futebol. Vi de perto toda a sujeira de cartolas, torcidas organizadas, técnicos e jogadores. Sobre as estrelas meu chefe Eduardo Silva, bem mais experiente no mundo da bola, dizia: "alguns pensam que são Deus, outros têm certeza". Viola, Luxemburgo, Leão (só pra citar alguns). Malas! Perdi o interesse pelo esporte. Nem tirar mais sarro dos amigos fanáticos eu tiro. 

Não sei se é por esse meu distanciamento, mas tenho a sensação de que, justamente na Copa no Brasil, o brasileiro está desanimado. Não vejo ruas pintadas. Camisas amarelas e bandeiras, só nas lojas. Ouvi pessoas criticando ou elogiando a seleção apenas no dia da convocação. O bordão da vez é "imagina na Copa", e não tem nada a ver com futebol.

Como disse um colega de trabalho, fanático por bola e empolgado com a competição, mesmo sem a Copa, a saúde, a educação e a corrupção continuariam terríveis no País. É verdade. Mas os exorbitantes "investimentos" públicos com a competição tornaram ainda mais visível o fosso que separa os gastos com o que é essencial e o que não é necessário para a população. É como se os governantes falassem: "o povo é burro, ama futebol e vai fechar os olhos".

O brasileiro não é mais tão manso. É claro que quando o juiz apitar o início do jogo a grande maioria, e eu me incluo nesse grupo, vai torcer pela seleção. Os comandados de Felipão não têm culpa pelas mazelas do País e nós não devemos ficar com peso na consciência por vibrar com a equipe. O problema é que, se o Brasil for campeão, o desperdício e a farra com o dinheiro público vão ser abafados pela euforia do título.

Se vai ter Copa? É óbvio que vai. Mas seria melhor se não tivesse.

Por Romeu Piccoli

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Imbecis

Edição de foto: Blog Dom Rocha

"Pre-pa-ra que agora o fascismo vem com tudo". 

Não tenho o mesmo senso de humor nem o mesmo talento de Gregorio Duvivier para transitar entre crítica e piada com coisa séria. Mas concordo com a profecia do humorista do Porta dos Fundos transcrita no início do texto. 

A morte trágica do cinegrafista Santiago de Andrade já é usada malandramente para uma guinada à direita. A ideia de uma lei antiterrorismo é bizarra, retrógrada como quem a defende. Quem dispara um rojão contra outra pessoa, quem agride gente que pensa diferente, quem rouba, saqueia ou depreda patrimônio público ou privado é criminoso. Quem protesta pacificamente, não. O risco, agora, é demonizar todo tipo de manifestação. Para a classe política, desacostumada com a insurgência do eleitorado, seria uma benção. Para a sociedade, um desastre.

Os imbecis que se consideram salvadores do Brasil e usam máscara, visual inspirado no punk londrino e nome em inglês são massa de manobra. Tanto da esquerda radical burra que os coopta, quanto da direita reacionária que assiste de camarote ao circo pegar fogo e se "pre-pa-ra" para retomar o espaço perdido depois da saída dos presidentes-generais.

Involuntariamente, os black blocs são instrumento daquilo que criticam, ajudam quem está no poder e quem quer retomá-lo. Foram eles que esvaziaram as manifestações de junho, um movimento que parecia ainda mais importante que o das Diretas Já. A sociedade continua querendo protestar, mas não aceita as regras violentas dos meninos mimados de cara escondida que tomaram as ruas de assalto. O quebra-quebra faz muito barulho por nada. Parte de uma minoria, não é legitimado pela população, portanto, não assusta quem está poder. O que tira o sono de governante é avenida lotada de gente de bem.

A morte de um cinegrafista também se torna emblemática. Os meios de comunicação não são santos, cometem falhas, excessos e muitas vezes são manipulados. Por isso devemos calá-los? 

Depois da mordaça imposta pelo regime militar, a imprensa subiu, degrau por degrau, a escada que nos levou à liberdade de expressão e à democracia. O clichê de que uma não existe sem a outra é fato. Por piores resultados que elas tragam, em alguns momentos, sempre são melhores do que o cerceamento de ideias e do que qualquer ditadura (de esquerda ou de direita). Prefiro ter o direito de errar, seja numa opinião ou num voto, do que não poder dizer o que penso ou decidir quem vai governar o lugar onde vivo.

É sutil, mas pesa sobre nós uma pressão para empurrar-nos escada abaixo. A justiça que proíbe uma reportagem contra a família Sarney antes da publicação -isso não é censura?-; o partido que, tentando justificar seus atos ilegais como uma "armação da imprensa", manipula seus correligionários e marionetes sindicais para agredirem jornalistas; a polícia que quer calar repórteres com intimidação e balas de borracha ou de chumbo; e os "manifestantes" que incluíram jornalistas em seus alvos de violência. 

Como disse Diego Escosteguy,  o rojão que matou o cinegrafista da Band foi aceso bem antes da manifestação do último dia 6. A animosidade de radicais (mais uma vez, de direita ou esquerda) com a imprensa não é de hoje. Em toda passeata sempre tem algum grupo tentando enxotar equipes de reportagem. Estúpidos. Querem gritar para surdos.

Por Romeu Piccoli

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Borboletas no estômago

Foto: Patrícia Ferraz - com inspiração de Gisele Bündchen
Vesti um all star, que era pra entrar no espírito. No desjejum, cafeína, para evitar o sono. Cheguei atrasada. Aliás, foi sempre assim, por que mudaria agora?

A professora, num vestido azul marinho envelopado, com ilhós dourados ao longo da gola canoa, explicava o programa da disciplina. Óculos finos de lentes grossas, cabelos de anjinho, do tipo gordinha fofa. Sandália impecável de verniz, bolsa Louis Vuitton dependurada num suporte de mesa. Fazia o melhor estilo mulher moderna.

Depois do diagnóstico visual detalhado e do átimo de vergonha por interromper a aula — vergonha tão recorrente, quanto passageira — consegui concentrar-me.

Os neurônios trabalhavam em marcha: eretos, atentos, aflitos por estabelecer nexos à altura da explanação. As mãos suadas denunciavam o corre-corre intracelular. O estômago queimava, enquanto os olhos, secos de não piscar, deslizavam, agitados, entre os poucos metros quadrados da sala apertada e quente. Era como se, com as pupilas dilatadas pelo café, eu pudesse absorver pelos olhos tudo o que era dito ali.

Não sei se a professora tinha uma voz bonita. Mas admirei como poesia cada vocábulo, cada sentença e, acima de tudo, cada pausa. Acho mesmo que os melhores trechos de qualquer discurso estão nas pausas. É quando se demonstra um respeito por quem ouve. E quando a gente tem tempo para ponderar a profundidade do que foi dito.

É provável que os outros vinte e poucos colegas não tenham ficado tão deslumbrados quanto eu no primeiro dia de aula do Mestrado. É que fiquei feliz sobretudo por me descobrir capaz, novamente, de me apaixonar por uma professora.

Por Patrícia Ferraz

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Qualquer semelhança

Um desfalque na conta bancária e boas histórias para contar. São os resultados de um mês sem carro. Ou melhor, um mês em vários carros brancos com placas vermelhas, dirigidos por seres intrigantes. Fico curiosíssima para ouvir causos e peripécias dos taxistas. Geralmente, não precisa de pergunta, nem de uma repórter no banco de trás.

—Para onde?
—Alto da Lapa, por favor.

Esse era mais velho. Cabelos brancos, encaracolados. Falou tanto, que fiquei à vontade.

—Já te falaram que o senhor parece o Mandela?
—Mandela?
—É, o Nelson Mandela, que morreu recentemente — ele interrompe ao se lembrar:
—Ah, o presidente, né?
—Isso, da África do Sul.
—Não, já me falaram que pareço o Bira.
—Bira?
—É, do Jô Soares.
—Nossa, verdade. Parece o Bira mesmo.
—Tem um outro sujeito que o pessoal fala que eu pareço muito, mas eu não gosto. Fico bravo, às vezes.

O sinal fecha, ele olha para trás e, concluo, pasma:

—Reginaldo Rossi!

Rachei de rir. O taxista era simplesmente sósia do cantor. Bochechas grandes, lábio inferior carnudo, cabelos crespos e óculos. Irmão gêmeo separado na maternidade. 

—Todo mundo vive falando que eu pareço o Reginaldo Rossi. Outro dia, no ponto, uma mulher cismou que eu era ele. Os caras acharam graça, começaram a brincar que era eu, mesmo. Ele ainda não tinha morrido. Não é que a mulher veio me pedir um autógrafo?
—E o senhor deu?
—Eu não. Quer autógrafo, pede para ele.

No rosto carrancudo, a satisfação de ser reconhecido se mistura à frustração de ser sempre confundido. Ele se cala. Tenta provar que não se orgulha da semelhança. 

Alguns minutos depois do silêncio, raro numa corrida de taxi, não se aguenta. 

—Eu já carreguei ele. 
—Quem?
—O Reginaldo! Tava a mulher dele, um cara e ele sentou aqui na frente. Eu olhei, assim de rabo de olho, e pensei: "Se ele falar que eu pareço com ele, eu vou dizer: 'Eu não, tá louco. Eu sou bonito, você é feio'."

Não precisou. O cantor nem enxergou o rosto do motorista. Foi nessa época que ele começou a se fazer de desentendido. Quando alguém destacava a semelhança, ele fingia:

—Quem? Não conheço esse cara.

Mais um dedo de prosa e cheguei ao meu destino.

—Trinta e quatro.
—Deixa eu ver se o senhor parece mesmo o Reginaldo Rossi. Olha aqui… 

Ele se vira.

Não resisti. Até tinha pensado em poupá-lo, mas ele era a reencarnação do velho Reginaldo.

—Posso tirar uma foto?

Seu ReginaldoCoverBravoDemais ficou vermelho, entregou-me o troco e balbuciou:

—Quer foto? Pede pra ele.

Foi embora reclamando do destino inexorável de ser o clone vivo de um morto famoso.
Foto roubada, pra não dizer que inventei
Por Patrícia Ferraz


quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Brasileiro convencido


Fotos: Romeu Piccoli
Era pra ter saído da casa dos pais com meia hora de antecedência. A prefeitura fecha às 16h. Funcionário público tem sorte. Eu não. Faltam 14 minutos. 

Viro a chave do carro. A luz amarela lembra que era pra ter abastecido. Não dá pra parar agora. Também não dá pra ligar o ar condicionado, senão o combustível não vai dar. Por que eu pus álcool da última vez? 38 graus lá fora. Dentro do carro, que estava fechado embaixo do sol, uns 45.

Janela aberta. Cabeça fervendo. Trânsito. Antes, era só nos finais de semana e feriados, quando os farofeiros invadiam a cidade. Agora os farofeiros são diferentes. Mas ainda são farofeiros e passam o verão inteiro por aqui. Eu chego perto do semáforo, ele fecha. Quando abre, uma mulher pisa na faixa de pedestre. Não vou avançar, não vou falar um palavrão. Eu sou civilizado, me convenço. 

Por que eu quis pegar onda antes de resolver os compromissos nessa rara folga de meio de semana? Aliás, toda folga é rara para um jornalista. Eu sei porque fui surfar antes. Porque é muito melhor do que resolver questões burocráticas. Qualquer coisa é melhor do que resolver questões burocráticas. Principalmente, no país da burocracia. Burocracia que não funciona. Do país que não funciona. E eu sou filho desse país. Por isso deixei pra última hora, pro último dia possível de resolver a maldita questão burocrática. Eu sou igual a estádio da Copa. Atrasado, enrolado. Só não tenho tanta grana, nem falcatrua. 
Itaquerão
Cheguei na prefeitura!

—O estacionamento tá cheio, patrão.

Eu não vou xingar o porteiro da prefeitura. Ele não tem culpa. Sou civilizado, me convenço.

Duas voltas ao redor do paço. Não tem lugar. Dentro do carro, sozinho, eu posso xingar. Caralho! Não vou parar em vaga para deficiente. Eu sou civilizado, me convenço. Um Celta sai. Com a tal da pressa inimiga da perfeição, espremo meu carro na vaga do celtinha. Bato no para-choque do carro da frente. Bato no para-choque do carro de trás. 

Saio correndo, pingando suor, com dor de cabeça. Na porta da prefeitura lembro que deixei os documentos no carro. 15h55. Corro mais, transpiro mais, a dor de cabeça aumenta. Quando pego a pasta no banco do passageiro percebo que amassei o carro de trás. Prejuízo. Porra! Depois resolvo isso. 

O guarda municipal tá fechando a porta da prefeitura. 15h59. 

—Corre lá, Romeu.

Gente boa esse cara, acho que já joguei bola com ele quando era moleque. 

—Moça, preciso entregar essas guias.

Ela não se sensibiliza com a minha respiração apressada, com o meu suor, com a minha ansiedade.

—Sinto muito, senhor. Nós não vamos poder estar atendendo o senhor. 

—Pô, mas são quatro horas!

—São quatro e um, senhor. Diz a atendente, já se retirando da sala.

Isso funciona no Brasil, o horário de fechamento da repartição pública.

Eu suplico, imploro:

—Moça, por favor, eu moro em São Paulo, por favor, por favor...

Ela já saiu da sala.

FILHA DA PUTA!!!! Eu sufoco o xingamento na garganta. Sou civilizado. Sou atrasado. E me convenço, sou brasileiro e sou calado. 

Por Romeu Piccoli

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Passeio no purgatório

Foto: Reuters
Não sei dizer a idade da mulher. Podia ser 60, 70 anos. A aparência do rosto era de 80, embora o ímpeto e a velocidade das palavras fossem de alguém mais jovem. Ela pedia 2 reais para comer. Os dedos com cascas pretas de centenas de queimaduras nos mesmos pontos, provocadas pelo isqueiro, denunciavam o real objetivo. A velhinha, com cara de vó que faz crochê, queria alimentar o vício. 

Foto: Nilton Fukuda/Estadão
Era o meu reencontro com a cracolândia. A de São Paulo. Há muito tempo não fazia uma reportagem por ali. O ambiente é democrático. A democracia da degradação. Todos são iguais, independentemente de idade ou classe social. Quando digo classe social é a de origem, por que lá  todos estão na mesma sarjeta. Todos são zumbis, todos têm a mesma perturbação, o mesmo auto-abandono, a mesma impotência para qualquer outro fim e a mesma disposição da vozinha pra conseguir o que colocar no cachimbo.


A minha função era descobrir como os 200 dependentes químicos que aderiram ao novo programa da Prefeitura estavam lidando com as regras. Eles moravam nas ruas ou em barracos montados nas calçadas ao redor do fluxo, o lugar onde o crack é vendido e fumado ao ar livre.  Passaram a ter hospedagem em hotéis paga pelo Município, emprego de gari com remuneração de 15 reais por quatro horas trabalhadas, três refeições e cursos profissionalizantes à disposição. Eles não são obrigados a largar a droga, mas não podem usá-la dentro do hotel e nem entrar no quarto depois das  22h.

"Vou pra cracolândia ter hotel e comida de graça", ironizou um comerciante de classe média, com barba feita, gel no cabelo,  sapato social lustroso e camisa de botão por dentro da calça jeans, marcando a protuberante barriguinha preguiçosa. Acredite, ele não gostaria de estar lá. Ninguém gostaria.

A resposta para o comerciante sem vício (aparente) vem, sem querer, de um dos adeptos do programa que entrevistei. Márcio, 42 anos, poucos dentes na boca e muita lucidez na cabeça há dois dias sem a fumaça do crack. "Quando um viciado desesperado pede ajuda, o cara humilha: 'vai trabalhar, vagabundo', mas quando o viciado tá com um arma na mão ninguém chama ele de vagabundo". Com a experiência de quem definha há 8 anos na rua e na pedra, Márcio enxerga no projeto uma chance pra que alguns dependentes deixem de se humilhar ou não apelem ao revólver. "Nós somos invisíveis pra sociedade".  

O programa pode até ser uma maquiagem no centro da cidade, como teme Flávia, uma negra bonita, de 37 anos, que há dois não vê o filho pequeno. "E se depois da Copa eles largarem a gente na rua, de novo?". É uma hipótese. Pode ser também mais um ralo para o dinheiro da corrupção. Talvez.  Mas é, no mínimo, uma iniciativa  diferente, em meio a tantas ações públicas desastrosas, puramente midiáticas ou inócuas.

Márcio já foi motorista de bacana e mecânico. Vestir o uniforme de gari não seria propriamente o sonho de alguém com esse currículo. Mas ele teve orgulho, estava trabalhando novamente, pensando em algo que não fosse como conseguir uma pedra. Sentiu-se útil. E isso é importantíssimo para que o dependente, pelo menos, cogite a recuperação. 

Quando agradeci pela entrevista, Márcio ficou com os olhos cheios de água. Perguntei por que se emocionou. "Porque você conversou comigo, me deu a mão". Ele tinha feito as pazes com a sociedade. Não era mais invisível. 

Por Romeu Piccoli



terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A menina da caixa de papelão

olhos
Foto: Rik Ferraz
Ela vivia no jardim. E quando qualquer monstro aterrorizante aparecia-lhe para tirar o sossego, corria para dentro da caixa. Eram quatro partes de um papelão grosso, que não a isolavam propriamente do ambiente externo, mas lhe promoviam a ilusão de privacidade. Ilusão porque o olhar mais indiscreto estava também ali dentro para observá-la: o seu próprio.

Demétria tinha olhos grandes, expressivos, quase onipresentes. Mirava os acontecimentos ao redor e dentro de si com dramaticidade. Agarrava-se aos seus sofrimentos psíquicos como se fossem causa e consequência de sua existência. 

A caixa proporcionava-lhe algo de seu, de especial, de diferente. Se não tinha o mundo, tinha um pequeno espaço. Se não tinha a si, escondia-se onde só os seus olhos pudessem pousar sobre tantas fraquezas.

Mas não era fácil ficar ali. Havia uma nuança de perversidade. Soava-lhe bonito sofrer como mártir. Qualquer conquista poderia assumir uma aparência maior do que de fato tinha. Essa era a grande sacada.

Para completar o ciclo, comparava-se com qualquer outro ser que lhe parecesse razoável. E sempre encontrava parâmetros para se diminuir. Não era a mais rápida na corrida; tampouco a mais sedutora; nem mesmo a mais inteligente da classe. Era uma menina ordinária, no sentido literal da expressão.

Embora em seu inconsciente estivesse inscrita a informação mais fidedigna a respeito de suas verdades – a de que suas dores eram menores do que lhe pareciam - Demétria preferia que tudo permanecesse assim. Orgulhava-se de ser “A menina da caixa de papelão”.

Ainda quando as partes estavam dobradas e sobrepostas, resumidas a um encarte compacto, havia de carregar seu refúgio nas costas. E aquilo  tinha um peso do qual era tão difícil desfazer-se quanto manter.


Por Patrícia Ferraz

sábado, 11 de janeiro de 2014

A morte do machão

Foto: Romeu Piccoli

Almoço de domingo. O anúncio deixou pai, mãe, avó, tia e irmã incrédulos. Em 36 anos de vida Robson nunca falara em casamento. Mas agora ele estava convicto. "Encontrei a mulher da minha vida". 

Conheceu Keila no restaurante onde comia o prato-feito bem servido perto da fábrica. Ela também trabalhava por ali. Era cabeleireira. 

Robson fez a declaração solene à família logo depois do primeiro encontro. Uma carona no final do expediente e só rolaram uns beijos. Ele respeitou a moça. Já estava apaixonado. E isso era raro. 

Foto: Instagram Emerson Sheik
Machão, Robson não era o tipo de se entregar aos sentimentos, muito menos de falar sobre eles. Também não gostava de música romântica e odiava gays. Cortou relações com Otelo depois que o primo assumiu a homossexualidade. "Sem-vergonha!". Arrancou o pôster da parede com Emerson Sheik comemorando o segundo gol do título da Libertadores assim que viu a foto do atacante dando um selinho num colega. Numa reunião, na Gaviões da Fiel, prometeu quebrar na porrada qualquer um que ousasse fazer parte das Gaivotas Fiéis, a torcida cor-de-rosa do Corinthians. 

Keila quase não falava da vida pessoal. Era meiga, mas com atitude. Tinha nos olhos um pouco de tristeza e a força de quem já sofreu bastante. Era alta, loira, sempre muito maquiada. Só não era perfeita porque torcia pro Palmeiras. Mas ela podia.

Com o namorado novo, Keila fazia linha dura. Foram ao cinema, passearam de mãos dadas no shopping. Depois, só beijinhos no carro, o que deixava Robson ainda mais apaixonado. No sexto encontro, ele foi buscá-la no salão de beleza empunhando um buquê de rosas. Assobios e risadinhas dos colegas da garota. 

Aquela noite foi quente! Keila ficou sem a blusa. Resistiu.  Não tirou a calça jeans colada nas coxas longas e grossas. Lá pelas tantas, abriu o zipper de Robson e, com a boca, o fez ter a melhor sensação que já experimentara na vida. 

Keila sabia que não daria para segurar mais num próximo encontro. Começou a evitar Robson, não atendia os telefonemas. Quando falava com ele inventava uma desculpa para não o encontrar. Almoçava em outro restaurante.

Quase uma semana sem ver Keila. Robson se consumia. Na sexta-feira, saiu da fábrica 15 minutos antes e fez plantão em frente ao trabalho da amada. Ela não tinha como escapar. 

Foram para o apartamento dele. Beberam quase uma garrafa inteira de vodka com energético. Aquilo estava uma loucura. Num golpe só ele arrancou a blusa e o sutiã da garota. Era uma luta na cama. Tirou a saia com fúria. Quando puxou a calcinha para baixo, com as duas mãos, um choque!

Keila era Roberto. A imagem daquele negócio apontado pra ele (maior que o dele) deixou-o sem ação. Primeiro, Robson se levantou de susto, depois se sentou na cama para não cair. Não teve forças pra mais nada. Só falou baixo, arrasado, para Keila/Roberto ir embora.  

Robson ficou naquela cama até a noite seguinte, prostrado. Não saiu de casa por 5 dias. "Eu beijei a boca de um homem, passeei com um travesti". Vomitou várias vezes, teve diarréia. Pediu demissão por telefone. Não se alimentava. Emagreceu 6 quilos em duas semanas. Estava enlouquecendo.

"Vou matar aquele viado". Comprou um 38 com a numeração raspada de um vizinho de infância que virou malandro. Guardou o revólver no guarda-roupa até decidir o que iria fazer. 

No vigésimo dia após a fálica revelação, Robson tomou um banho e foi até a esquina do ponto de ônibus onde Keila/Roberto pegava a condução. Quando o travesti se aproximou, o moribundo abriu a porta do carro: "entra". Ele/ela quase não reconheceu o ex-namorado. Magro, de barba, com olheiras enormes, vestindo moleton com capuz e usando um boné, até a mãe dele o confundiria. 

A viagem ao prédio foi em silêncio. No elevador, Robson não cumprimentou a vizinha. Abriu a porta do apartamento com as mãos trêmulas. O corpo inteiro tremia. Não acendeu as luzes. Keila/Roberto entrou resignado, como gado no matadouro. Continuavam sem dizer uma palavra. 

De repente, Robson jogou a vítima na parede... E se entregou ao prazer. A todos os prazeres. Aos dele, aos de Keila e aos de Roberto.

P.S.: A arma continua no mesmo lugar. Robson só mexe nela de vez em quando para mostrar aos amigos o que ele faria se alguém resolvesse criar mais alguma torcida gay do Timão.

Por Romeu Piccoli

Foto: Romeu Piccoli