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Cabelão e franjinha, cinco anos de idade, uniforme de malha e tergal,
verão de 35°. Era hora da diversão. A escola levava os alunos para uma área conhecida como Campão: um imenso gramado com as mesmas medidas de
um campo de futebol profissional. Ali, suada depois da brincadeira, meus
desejos eram dois: beber uma garrafa d’água geladíssima e tirar a camisa. Só consegui
satisfazer o primeiro. Claro. A professora nem precisou me explicar que menina dessa
idade já não fica mais com o peitinho de fora na frente dos outros. Menino, sim.
Fiquei olhando os coleguinhas no Campão, suados como eu, mas sem aquele uniforme quente, vermelho e bege, que mais parecia um pijama de mau gosto.
Isso era 1991. E o episódio nunca me saiu da cabeça. Acho que foi a minha primeira reflexão
feminista. E, na sequência, vieram outras. Almoço de domingo, tios e primos à mesa. Depois
da sobremesa, mulheres à cozinha. Homens ao sofá. “Por quê?”, pensava. E,
no começo, cheguei a desejar ter nascido homem. (!!!)
Dessa criança, não poderia ter saído uma adulta de
direita, nem carola, nem a favor dos valores pregados pela “tradicional família
mineira”. Até hoje, gosto dos temas que trazem a mulher para o protagonismo de
sua vida. E acredito que estamos num caminho sem volta quando o assunto é a
crescente igualdade de direitos entre os gêneros.
Nesse contexto machista em que nascemos e
crescemos, sempre enxerguei o casamento como a instância da perda: perda de
autonomia, de individualidade, perda até de personalidade. No meu inconsciente,
decidir me casar era assinar um compromisso que me anularia as escolhas e
aniquilaria minhas possibilidades de ser exatamente quem eu sou. Como se para
me unir a outra pessoa eu precisasse ser uma MULHERZINHA. E como eu repudiava
essa figura!
Mulherzinha, na minha cabeça, era aquela grande
mãe sem vontade própria. Não pode investir na carreira, que deve sempre estar
num segundo plano. Vive sobrecarregada com sua dupla jornada de trabalho ─ a cozinha e as obrigações domésticas não dizem respeito ao marido, né!? Mulherzinha
dorme pouco, pare cinco filhos, não tem tempo para ler, malhar, viajar e sequer
escolhe o sabor da pizza. Ela está sempre na sombra da FAMÍLIA, esse valor
básico da vida em sociedade que, para mim, era um inimigo da independência.
Foto: Aline Bertoli |
Até que a roda viva girou e acordei com uma
aliança no dedo e um amado na cama. A feminista se casou: vestiu-se de
noiva, assinou papéis no cartório, uniu as louças, as escovas de dentes, só não
mudou de nome ─ isso já era demais para a minha cabeça.
Subitamente, meu pavor do fantasma da mulherzinha
se avolumou. Declarei antecipadamente: não quero ter filhos! (Ora, como vou
seguir planejando carreira e estudos se tiver obrigação com crianças?!) Fazia
contas sobre quanta atividade doméstica eu havia feito na semana e comparava
com as tarefas desempenhadas pelo marido. Aumentei a frequência da diarista. E
coloquei na ponta do lápis todas as contas de casa para uma divisão igualitária,
centavo a centavo. Era um grito de independência, um aviso: não vou me afastar
de mim!
Meu marido, que não é bobo nem nada, entendeu
rapidinho os recados. Aceitou a princípio todos os “não gosto” e “odeio” e “não
quero” e “abomino”. E esperou que aquele furacão, o susto, o medo passassem.
Parece até que ele já sabia o que ia acontecer.
Não sei quando percebi que é possível, sim,
construir uma relação equilibrada, de respeito, sem que se percam as
possibilidades individuais. E acredito mesmo que isso depende das nossas
escolhas, dos nossos comportamentos, desejos e, principalmente, da nossa
libertação. Os sutiãs foram “queimados” (descobri há poucos dias que não chegaram
a ser queimados, mas vale a simbologia) há mais de 50 anos. A saída em massa da
mulher para o mercado de trabalho começou no século passado. A geração seguinte
parece não ter entendido o movimento e se viu obrigada a vestir a fantasia de
super-mulher. Trabalha, estuda, cuida, cozinha, lava, passa, limpa, paga. Ufa!
Elas fazem tudo e ainda se sentem insuficientes. Elas cuidam de quase tudo.
Menos de si.
Foto: http://princesashe-ra.blogspot.com.br |
Desde o início, recusei a capa da She-Ra. E
também o avental. E tudo isso só funcionou porque o meu marido não tem pinta de
Fred Flintstone e nunca sonhou em ser o He-Man. Ele faz compras de mercado, eu
também. Ele arruma as dobradiças do armário, eu ajusto as porcas das
prateleiras. Ele cozinha, eu lavo roupas. Ambos lavamos a louça e pagamos
as contas. E ninguém perde. Ninguém precisa sofrer. Não existe desigualdade.
Muito menos submissão.
Só assim entendi que o medo do machismo funcionava
em mim como um cabresto. Ao mesmo tempo que me fazia seguir adiante, focada na
tentativa de construir uma relação equilibrada, obnubilava a minha visão para
aspectos da minha intimidade que eu insistia em ignorar. Como o universo tradicionalmente feminino era um lugar de ameaça (lave louça e seja para sempre a
doméstica), eu me afastava de tudo que historicamente fizesse parte desse papel.
Não desejava ter filhos. Acreditava que seria assinar o atestado final de desistência
de mim mesma. Maluco, né? Mas juro que pensava em filhos como o fim da vida, a morte
da mulher.
Hoje, vendo como nós mulheres ainda lutamos por
liberdade, acho necessário fazer algumas ponderações. Lutar é uma palavra que
diz respeito a guerra. E por mais que ainda existam muitas injustiças de
gênero, a maior guerra está dentro da gente. Acredito na necessidade de darmos
prosseguimento às mudanças que começaram com os peitos de fora. Mas acho que
não precisamos mais provar nada pra ninguém. Podemos ser efetivamente livres.
Livres para não casar, não ter filhos, não cozinhar. E livres também para não
nos sentirmos ameaçadas se alguma dessas for a nossa vontade.
O casamento e o desejo recente de ser mãe no futuro não
me tornam menos independente ou autônoma. Pelo contrário. Assumir
as minhas vontades, mesmo que algumas delas sejam as mesmas da mulherzinha de
antigamente, me deixa mais perto de quem eu sou.
Terminou a era dos extremos (pelo menos no Ocidente). Sair da dominação,
um dia, exigiu que nos afastássemos das mulheres que existem em nós. Mas,
passou. Agora é hora de equilibrar a balança. Podemos ser tudo: profissionais,
casadas, solteiras, donas de casa, cinquentonas sem filhos, parideiras de
tradição. Desde que façamos as nossas vontades. É tudo uma questão de parar de
lutar contra alguma coisa do lado de fora. E escolher o silêncio para ouvir o
que vem de dentro.
Foto: Rik Ferraz |
Por Patrícia Ferraz
Dar voz as nossas vontades é muito importante, e vc soube sintetizar isso de maneira exemplar. Parabéns.
ResponderExcluirMuito bom o texto! ♡
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