domingo, 5 de janeiro de 2014

Prisão domiciliar



Foto: Alexandre Nacano
Era um martírio ver os amigos passando com a prancha embaixo do braço. Flávio morava a três quadras da praia. Preferia não olhar mais pro mar - justamente o mar, que sempre trouxe tanta alegria pra ele. Sentia-se injustiçado pelas próprias escolhas. As ondas quebrando sozinhas ou, principalmente, com alguém nelas o lembravam disso. E ele preferia não remoer aquela angústia.

Foi a aproximação com Rita que o afastou da prancha. Paixão avassaladora. Garota bonita, certinha, "a" inteligente da escola. Nunca olhou pra ele no colégio. Como é que ela foi gostar de mim? Por causa dela, Flávio começou a usar camisa pólo, daquelas com o logo do jacarezinho, que antes ele odiava. Bermudas coloridas, ainda existiam algumas no guarda-roupa. Tênis de skatista, nem pensar. Sapatênis é mais elegante, impunha Rita. 

Os amigos eram os amigos dela. Os brothers ele só encontrava de vez em quando, passando pela rua. Conversava 5 minutos e seguia. Dava uma saudade. No começo do namoro Flávio ainda tentou enturmá-la. Não deu. "O Zé é maconheiro demais, o Cabelo só sabe falar de surf, o Marcelo é muito galinha e a mulher do Beto fica dando em cima de você". Nenhum servia. 

Flávio não era bonito. Mas o sorriso largo, que lhe valeu o apelido de Bocão, e o brilho que tinha nos olhos lhe conferiam certo charme. Da galera da praia ele já havia azarado as mais bonitas. Antes do primeiro beijo na Rita, claro. 

Aos poucos, o rosto de Flávio foi ficando apagado. As rugas se acentuaram. A barriga cresceu assustadoramente. A diversão era beber cerveja (muita), fazer churrasco no sábado e jogar videogame. Ele não era mais o Bocão. Todo mundo percebia. 

Chorou quando descobriu que a mulher tinha um caso. O ódio aumentou quando soube que era com o chefe dela. Engomadinho e pedante.  Aquele cara que nas festas da firma sempre tinha um ar de superioridade e lhe dava tapinhas nas costas.

Ficou duro na partilha da separação. Depressivo, perdeu o emprego.

Resolveu encarar a praia, só ficou na areia. Encontrou com Percy, o amigo que shapeava as pranchas pra ele nos bons tempos. "Porra, Boca, gostava de ver aquela cavada com a mão na água que você dava. Passa lá na oficina". 

Pranchinha normal não ia dar. Flávio estava com 23 quilos e 11 anos a mais do que da última vez em que surfara. Percy liberou para o ex-atleta da equipe uma fish de segunda mão, larga e com bordas muito grossas. Parecia aqueles "baús" dos anos 80, mas com um fundo moderno e quatro quilhas, dava pra surfar com três também."Vai que é sua, Bocão!". Ele não se empolgou, nada o empolgava ou o fazia sorrir de verdade já bem antes da separação.

A estreia foi numa segunda-feira ensolarada de março. Mar perfeito, um metrinho, liso, fácil de atravessar a arrebentação. Flávio foi com calma. Sentou na prancha, que quase escapou por entre as pernas. Esperou recuperar a respiração. Caiu nos dois primeiros drops. Completou o terceiro, mas foi reto, não alcançou a parede.

Ele estava na água há pouco mais de uma hora. Os braços pesavam uma tonelada. Resolveu aguardar a saideira. Uma esquerda bonita, em pé. Remou, entrou certinho. Acelerou, deu um cutback redondo com a mão na água, se desequilibrou um pouco quando encostou na espuma. Acertou o pé novamente. Ganhou um pouco de velocidade. Mandou mais duas rasgadas e finalizou com uma batida na junção, sentiu até a rabeta dar uma derrapadinha de leve antes dele ficar completamente ereto em cima da prancha e perceber que havia concluído a onda com dignidade. 

O surf não era mais o mesmo, mas o sorriso era o daquele menino de 13 anos.

Por Romeu Piccoli

16 comentários:

  1. Interessante...as pessoas querem amar o próximo sem amar a si mesmo.....quando aprenderem que para amar o próximo é preciso primeiro se amar, a vida não ficará vazia e nem sem sentido como a deste surfista.....depois dos 50 anos aprendemos que só entra em nosso coração aquilo que permitimos, o que não queremos que entre temos o poder de fechar a porta e deixar do lado de fora.....Deveríamos aprender isso mais cedo e sofreríamos menos.....adorei Romeu....Me fez lembrar algumas pessoas que amei no decorrer da vida e viveram semelhante situação....bjs.

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    1. Perfeita definição. Obrigado. Você fez o primeiro comentário no nosso blog. Que venham muitos! Ficaremos honrados se você se identificar. Mas se preferir o anonimato fique à vontade. Abração.

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  2. Linda essa história..
    Quando nos apaixonamos, tudo o que vemos na pessoa é mágico, então por que querer mudá-la no decorrer do tempo...

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    1. Talvez, desejamos a mudança do outro porque não conseguimos mudar a nós mesmos. Abração, Maria.

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  3. Me fez lembrar um adesivo de carros que dizia: Não há nada que um bom dia de surf não cure.

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  4. Bem reflexiva essa historia,me fez pensar sobre algumas coisas..Muito bom!

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  5. Muitos se ausentam da propria vida para viver a dos outros e depois culpam o próximo por sua tristeza. Viva a sua e só assim será feliz, traga tudo de bom para ela e desse jeito ela refletirá o seu amor e sua força de viver para todos a sua volta.
    Viva sem fingir, sem máscaras e só assim será completo.
    Faz tempo que nao caio na agua!

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  6. Parabéns. Como os filmes do Tarantino, tem assinatura. Vou acompanhar. Cris

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    1. Pô, Siri, tá de viadagem. Black trunk pega -15 C no pelo! Leva o snowboard pra praia!

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  8. Belo texto Romeu. Me fez pensar quanto tempo perdemos tentando ser perfeitos aos olhos alheios, ao passo que a felicidade, mesmo que de forma entrecortada a momentos dr crise, só acontece quando somos autênticos. Conheço uma pessoa que se distanciou de seus valores, de sua criação, de tudo o que lhe ensinaram de simples e bom para assumir uma nova postura, artificial e vazia, ao lado de alguém que ama... e como sofre... e como é difícil não ser aceito do jeito que se é... Forte abraço!

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    1. Somos o que somos, Rodrigo. Quando tentamos ser outra coisa não convencemos os outros e nem nós mesmos. Abç.

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