terça-feira, 14 de janeiro de 2014

A menina da caixa de papelão

olhos
Foto: Rik Ferraz
Ela vivia no jardim. E quando qualquer monstro aterrorizante aparecia-lhe para tirar o sossego, corria para dentro da caixa. Eram quatro partes de um papelão grosso, que não a isolavam propriamente do ambiente externo, mas lhe promoviam a ilusão de privacidade. Ilusão porque o olhar mais indiscreto estava também ali dentro para observá-la: o seu próprio.

Demétria tinha olhos grandes, expressivos, quase onipresentes. Mirava os acontecimentos ao redor e dentro de si com dramaticidade. Agarrava-se aos seus sofrimentos psíquicos como se fossem causa e consequência de sua existência. 

A caixa proporcionava-lhe algo de seu, de especial, de diferente. Se não tinha o mundo, tinha um pequeno espaço. Se não tinha a si, escondia-se onde só os seus olhos pudessem pousar sobre tantas fraquezas.

Mas não era fácil ficar ali. Havia uma nuança de perversidade. Soava-lhe bonito sofrer como mártir. Qualquer conquista poderia assumir uma aparência maior do que de fato tinha. Essa era a grande sacada.

Para completar o ciclo, comparava-se com qualquer outro ser que lhe parecesse razoável. E sempre encontrava parâmetros para se diminuir. Não era a mais rápida na corrida; tampouco a mais sedutora; nem mesmo a mais inteligente da classe. Era uma menina ordinária, no sentido literal da expressão.

Embora em seu inconsciente estivesse inscrita a informação mais fidedigna a respeito de suas verdades – a de que suas dores eram menores do que lhe pareciam - Demétria preferia que tudo permanecesse assim. Orgulhava-se de ser “A menina da caixa de papelão”.

Ainda quando as partes estavam dobradas e sobrepostas, resumidas a um encarte compacto, havia de carregar seu refúgio nas costas. E aquilo  tinha um peso do qual era tão difícil desfazer-se quanto manter.


Por Patrícia Ferraz

6 comentários:

  1. Excelente como sempre!!!!! Muito fã dos teus textos!!!! Obrigado por mais esse deleite Patricia Ferraz!

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  2. Fiquei com gosto de quero mais... Que pena, acabou tão rápido

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    1. Pretendo dar novos capítulos para a história da Demétria... rsrs Aguarde, Rosa! Beijos

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  3. "E aquilo tinha um peso do qual era tão difícil desfazer-se quanto manter." muito bom.

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