terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Passeio no purgatório

Foto: Reuters
Não sei dizer a idade da mulher. Podia ser 60, 70 anos. A aparência do rosto era de 80, embora o ímpeto e a velocidade das palavras fossem de alguém mais jovem. Ela pedia 2 reais para comer. Os dedos com cascas pretas de centenas de queimaduras nos mesmos pontos, provocadas pelo isqueiro, denunciavam o real objetivo. A velhinha, com cara de vó que faz crochê, queria alimentar o vício. 

Foto: Nilton Fukuda/Estadão
Era o meu reencontro com a cracolândia. A de São Paulo. Há muito tempo não fazia uma reportagem por ali. O ambiente é democrático. A democracia da degradação. Todos são iguais, independentemente de idade ou classe social. Quando digo classe social é a de origem, por que lá  todos estão na mesma sarjeta. Todos são zumbis, todos têm a mesma perturbação, o mesmo auto-abandono, a mesma impotência para qualquer outro fim e a mesma disposição da vozinha pra conseguir o que colocar no cachimbo.


A minha função era descobrir como os 200 dependentes químicos que aderiram ao novo programa da Prefeitura estavam lidando com as regras. Eles moravam nas ruas ou em barracos montados nas calçadas ao redor do fluxo, o lugar onde o crack é vendido e fumado ao ar livre.  Passaram a ter hospedagem em hotéis paga pelo Município, emprego de gari com remuneração de 15 reais por quatro horas trabalhadas, três refeições e cursos profissionalizantes à disposição. Eles não são obrigados a largar a droga, mas não podem usá-la dentro do hotel e nem entrar no quarto depois das  22h.

"Vou pra cracolândia ter hotel e comida de graça", ironizou um comerciante de classe média, com barba feita, gel no cabelo,  sapato social lustroso e camisa de botão por dentro da calça jeans, marcando a protuberante barriguinha preguiçosa. Acredite, ele não gostaria de estar lá. Ninguém gostaria.

A resposta para o comerciante sem vício (aparente) vem, sem querer, de um dos adeptos do programa que entrevistei. Márcio, 42 anos, poucos dentes na boca e muita lucidez na cabeça há dois dias sem a fumaça do crack. "Quando um viciado desesperado pede ajuda, o cara humilha: 'vai trabalhar, vagabundo', mas quando o viciado tá com um arma na mão ninguém chama ele de vagabundo". Com a experiência de quem definha há 8 anos na rua e na pedra, Márcio enxerga no projeto uma chance pra que alguns dependentes deixem de se humilhar ou não apelem ao revólver. "Nós somos invisíveis pra sociedade".  

O programa pode até ser uma maquiagem no centro da cidade, como teme Flávia, uma negra bonita, de 37 anos, que há dois não vê o filho pequeno. "E se depois da Copa eles largarem a gente na rua, de novo?". É uma hipótese. Pode ser também mais um ralo para o dinheiro da corrupção. Talvez.  Mas é, no mínimo, uma iniciativa  diferente, em meio a tantas ações públicas desastrosas, puramente midiáticas ou inócuas.

Márcio já foi motorista de bacana e mecânico. Vestir o uniforme de gari não seria propriamente o sonho de alguém com esse currículo. Mas ele teve orgulho, estava trabalhando novamente, pensando em algo que não fosse como conseguir uma pedra. Sentiu-se útil. E isso é importantíssimo para que o dependente, pelo menos, cogite a recuperação. 

Quando agradeci pela entrevista, Márcio ficou com os olhos cheios de água. Perguntei por que se emocionou. "Porque você conversou comigo, me deu a mão". Ele tinha feito as pazes com a sociedade. Não era mais invisível. 

Por Romeu Piccoli



9 comentários:

  1. Romeu, emocionante. Dia desses também tive a grata oportunidade de devolver a visibilidade a uma pessoa. Embriagado, o homem para em frente de casa e diz que tem fome. Eu bem que poderia colocar a comida em qualquer tigela velha e deixá-lo ir. Mas sei lá, achei que ele também merecia um pouco de dignidade. Coloquei-o dentro de casa, servi comida, bebida, apertei a mão, dei abraço e percebi nele que a fome era de outro tipo de comida... semelhante ao que aconteceu contigo. Parabéns pela reportagem, mas principalmente, pelo espírito de solidariedade. Às vezes é só isso que esperam da gente. Abraço forte.

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  2. A necessidade do adicto, nem sempre, é só de droga, Rodrigo. Abração.

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  3. Uau. Precisamos de mais cidadãos e menos cagadores de regra, sorry pelo termo, amigo, mas é pura realidade. Acordo todos os dias na esperança de encontrar pessoas e não coisas.
    Beijos,
    Sheila Fernandes

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    1. Sheiloca! Que luxo uma vencedora do Prêmio Esso comentando o nosso blog! Beijão.

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  4. caramba, que relato real, tão real que até assusta.... porém... verdadeiro e faz parte do dia dia de todos os brasileiros, espero que essa iniciativa tenha resultado positivo.

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  5. caramba!!!! relato tão real e assustador, porém faz parte da realidade do povo brasileiro, que essa iniciativa traga realmente um pouco de coragem e esperança pra essas pessoas que sofrem com esse vício.

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    1. Mesmo que sirva apenas para o dependente parar para refletir já é alguma coisa, Claudinha. Eles vivem num ritmo em que o único pensamento é a tal da pedra. Uma cama pra dormir, um banho e um trabalho podem ajudar a mudar o foco. Beijão, amiga. Venha nos visitar sempre.

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